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A intensa tempestade de contradições que atendia pelo nome de Chorão

Depois de bater um papo com Felipe Novaes, diretor do documentário sobre o líder do Charlie Brown Jr, e ainda ter a chance de ler a biografia escrita por Graziela Gonçalves, esposa do músico, constatei que o cara era realmente complicado de entender. Exatamente como eu e você.

Por THIAGO CARDIM

(originalmente publicado no JUDAO.COM.BR)

Quem me acompanha tem algum tempo nas redes sociais já tem esta crucial informação em mente, mas não custa reforçar aos recém-chegados: eu sou de Santos. Orgulhosamente nascido na cidade caiçara do pão de cará e da pizza de champignon com molho rosé, torcedor (?) da Briosa, eu repito isso o tempo todo, falo sem parar que sou #Familia013… o que inevitavelmente leva a uma pergunta qualquer envolvendo o Charlie Brown Jr. Sempre levou, aliás. Mas quer saber o mais curioso de tudo? A resposta para questionamentos como “você é fã de CBJr?” ou “você conhecia pessoalmente o Chorão?” mudou tanto, mas TANTO nos últimos anos, que o Cardim metido a metaleiro de 20 e poucos anos se surpreenderia ao ouvir o Cardim de 40 falando.

Eu era do tipo que gostava de deixar claro que ODIAVA Charlie Brown Jr. Ponto. Assim mesmo. Tinha bronca do Chorão, um cara que nunca encontrei pessoalmente (além da relação plateia/palco dos shows da banda, claro) mas de quem ouvi tantas e tantas histórias lindas e outro punhado absolutamente escroto. Aí, me foquei no que os mais próximos, que tiveram experiências tenebrosas junto do cara, me contavam, e bingo: lá estava ele no topo da minha lista pessoal de “famosos que eu agrediria fisicamente caso tivesse a chance” (você também tem a sua, não minta).

Corta pra coisa de 15, quase 20 anos depois. Se você me pergunta hoje “você é fã de CBJr?”, vou te dizer que FÃ, fã, não. Mas eu ouço MUITO mais a banda do que já sonhei um dia. Porque me ajuda a matar um pouco as saudades de um período da minha vida, dos meus amigos, da minha história, da minha cidade. Ouvir CBJr me faz ver aquelas muretas, sentir o vento vindo do mar no Emissário Submarino. “Você conhecia pessoalmente o Chorão?”, seria a questão sequencial. A resposta VERDADEIRA devia ser NÃO. Mas hoje, consigo dizer que, SIM, conheço o Chorão. Muito melhor do que conhecia antes. Principalmente depois do combo, da verdadeira IMERSÃO, que tive na vida do cara nos últimos meses.

Apesar de não ter tido a chance de assistir ainda ao documentário Marginal Alado, exibido na Mostra de Cinema de SP e ainda com data de estreia a confirmar em 2020, estive no painel do filme sobre a vida do Chorão na última comic con de São Paulo e ainda tive a chance de bater um papo com o diretor Felipe Novaes — também egresso de Santos, é bom que se diga. “A gente via o Chorão na rua, a gente cresceu ouvindo Charlie Brown. Eu sou da primeira leva de fãs do Chorão, final dos anos 1990, quando estourou”, explicou ele, em entrevista exclusiva. “Aquilo pautou muito minha juventude, eu escutava muito o Chorão”.

Mas, de verdade, este não foi o principal motivo que o levou a querer contar esta história nas telonas, a mergulhar de cabeça na jornada de um dos maiores nomes do rock nacional contemporâneo. Foi, sim, exatamente aquilo que descobri ao longo dos anos, em mim mesmo, e que me fez ter uma empatia MUITO maior com um certo Alexandre Magno Abrão. “Eu gosto de falar de contradição. É o que me pega. E neste sentido, o Chorão é um material riquíssimo, como personagem, como figura, um cara super contraditório, cheio de nuances. Eu sentia, quando o Chorão morreu, que a discussão precisava ficar um pouquinho mais aprofundada”, diz. “Porque a gente fala das coisas mas não discute o motivo, de onde vieram. O Hugo [Prata, roteirista do filme] falou uma coisa no painel muito interessante: o Chorão não morreu de um dia pro outro. As coisas foram acontecendo”.

Para o Felipe, caso tivesse que escolher uma palavra-chave pra discutir o líder do Charlie Brown Jr, ele não pensaria duas vezes: GENTE.

Acertou na mosca.

O cineasta faz questão de frisar que nós às vezes esquecemos que rock star, que ídolo, também é gente. Ser humano, sabe? “Eu sou escroto às vezes, sem querer. Às vezes a gente tá numa nóia, num momento ruim. Às vezes a gente é mais legal, às vezes a gente é mais empático, outras vezes menos. Só que quando a gente tá falando de um rock star, os termômetros são sempre mais quentes”, opina. “Então todo mundo tem uma história com o Chorão porque todo mundo conhecia o Chorão. O Chorão era vigiado 24h por dia. Se todo mundo me conhecesse e me vigiasse 24h por dia, todo mundo ia ter história minha”. O Felipe ainda ressalta que o Chorão era um artista na mais perfeita acepção da palavra e com tudo que isso implica. “Ele sentia tudo com uma intensidade muito profunda. O amor e o ódio vinham na mesma medida. Tem gente que vive assim, sem dosar. Isso é incrível por um lado. Mas tem um preço”.

No painel, aliás, o músico e apresentador João Gordo, com quem o Chorão durante muito tempo teve uma relação bastante conflituosa por causa do jeito sincerão tanto de um lado quanto do outro, descreveu o cara com exatidão. “Ele era um cara que te amava ou te odiava. Não tinha meio termo. Era só você falar mal da banda dele que ele pegava birra pra sempre”. Pois é. Uma tempestade sempre intensa.

Conforme fui tendo a chance de ouvir, minimamente, nos últimos dois anos, músicos e pessoas que trabalharam no staff da banda (alguns até da minha própria família), fãs mais próximos, amigos dos caras, bandas que dividiram o palco com ele, bandas que foram ajudadas diretamente pela mão do camarada prestigiado, um outro Chorão se desenhou na minha cabeça e passei a ter uma visão menos enviesada do sujeito. Assim como envelhecer me permitiu enxergar meus próprios demônios de maneira mais clara, me fez refletir sobre como eu não vou ser um herói pra todo mundo, como vou ser o vilão da história de alguém sempre, também me fez ver que um cara como ele era anjo e demônio em constante duelo ao mesmo tempo. E ouvir a voz dele, ainda que não me identificasse com 100% das letras, passou a ser quase catártico.

Ao ler a biografia escrita pela esposa do Chorão, Graziela Gonçalves, Se Não Eu, Quem Vai Fazer Você Feliz?, eu consegui enxergar quase que uma desconstrução, um complemento da conversa com o Felipe que tive poucas semanas antes de terminar de devorar o livro. Porque ela conta, capítulo por capítulo, como deixou as histórias que corriam pelas ruas de Santos de lado e abriu as portas e o coração pra aquele moleque cheio de ideias e com uma reputação de merda. E o grandalhão meio desengonçado se mostrou apaixonado, sensível, delicado, cheio de grilos, dúvidas, incertezas. Toda a confiança que ele demonstrava em cima do palco podia se desmontar em lágrimas quase infantis no quarto depois de uma treta com os camaradas de grupo. E foi justamente esta insegurança que o levou a uma relação abusiva com as drogas, aquela mesma que o afastou de quem amava e o matou de maneira brutal.

Foi este cara que, entre amigos e inimigos, amando e odiando, xingando e comprando flores, conseguiu se manter relevante na indústria fonográfica por 20 anos e sempre lançando hit, o cara largado de boné, bermudão e skate indo parar em novela, na abertura da Malhação. “E ele pega diferentes gerações. A galera dos anos 2000 consumiu um outro Chorão e foi fã igual”, diz Felipe. “Depois dos 2010 também. Eu via esta carreira com grande fascínio, com grande interesse”.

Tanto o Felipe pessoalmente quanto o texto da Graziela contam que o Chorão construiu aquilo tudo do zero. Ele queria desde sempre ter banda, tocar pra milhares de pessoas, fazer um som diferente do que rolava no cenário roqueiro do Brasil, sem precisar mais uma vez reciclar a sonoridade daquela galera dos anos 1980. E ele ralou MUITO pra chegar ali, brigou, passou perrengue financeiro, não teve o que comer, tocou material autoral em boteco pra meia dúzia de gatos pingados numa cidade que adorava era ver uma bandinha cover. “Já é uma história válida por isso. Tem sempre espaço, pra gente falar disso. É difícil a gente se encontrar, fazer arte no Brasil, se manter relevante”, diz Felipe, ao defender que a história de Chorão que ele conta no documentário seria igualmente fascinante pra quem nem é fã da banda ou tampouco conhece o frontman.

“A importância pra mim, enquanto criador, é mostrar que é importante a gente continuar correndo atrás dos nossos sonhos, daquilo que a gente acredita. Quando a gente faz com verdade, sempre tem alguém que se identifica com a gente. Vem do coração. E o Chorão era assim. As letras que o Chorão cantava, ele acreditava naquilo DE VERDADE. Isso tem um poder, uma potência, enorme. Já acho que pega o público de cara”, completa.

Há muita gente que aposta que, nos dias de hoje, Chorão seria, digamos, fã daquele sujeito que ocupa temporariamente a cadeira de presidente. O livro da Grazon dá pistas de que, ouvindo as bandas que ouvia como referência e se emocionando com as histórias de superação que sempre recebia, com as causas que resolveu apoiar, muito provavelmente ele enxergasse o mundo com outros olhos… “Eu acho difícil fazer qualquer exercício hipotético, imaginativo, sobre uma pessoa que já morreu”, diz Felipe. “Eu não sei te dizer. Se você parar pra pensar, o Chorão morreu um pouquinho antes de culminarem os protestos de 2013. As coisas aconteceram de formas tão inesperadas que eu não sei te dizer exatamente de que forma estas coisas se enquadrariam. O que eu sei te dizer é que o Chorão tinha uma consciência e uma responsabilidade social, ele sabia da importância que a figura dele tinha”. Mas ele aposta que mesmo o lado EMPRESÁRIO do Chorão falaria mais alto neste aspecto. “Era um cara do business também, super esperto, um produtor. Tenho certeza que o Chorão teria atualizado as pautas do Charlie Brown se estivesse vivo. Os tempos mudaram”.

Mas do outro lado, da nossa relação com as bandas do passado, o diretor acha que quem foi adolescente, criança, nos anos 1990, que tá fazendo 30 anos, finalmente tá conseguindo olhar como ADULTO pra esta época. “O olhar muda. Não é à toa que as pessoas tão indo nos shows do Sandy & Junior. Aglutina pessoas diferentes, de gostos musicais diferentes. Mas estamos olhando praquilo não estando dentro da situação. E sim com uma nostalgia, uma ressignificação, que tem tudo a ver com este momento do Charlie Brown. As pessoas escutam Charlie Brown porque aquilo é afetivo. É o som de uma época. Aquilo tem poder. O Chorão faz parte do som que tem a cara dos 1990, 2000. (…) A gente tá olhando com mais generosidade. Desapegamos daquelas brigas, se você prefere Los Hermanos ou Charlie Brown… Não, gente. Aquilo tudo é um panorama. Olhar como adultos vem com outro sabor”.

Felipe não era amigo do Chorão. Mas, tal qual este que vos escreve fez no começo do texto, ele diz que “conviveu” com o Chorão. Porque depois de acumular cerca de 20 horas de entrevistas, ele e o roteirista Hugo Prata ainda tiveram acesso ao acervo pessoal da banda, as imagens de bastidores registradas quase que incansavelmente entre um show e outro. “Eu via o cara entrando e saindo de van sem parar. É uma rotina, van, avião, palco. Foi bom poder trazer um pouco pro público deste olhar que é a música não só como hobby, mas como trabalho. Você gosta de fazer seu trabalho, mas tem hora que cansa. É esta complexidade”.

E se eu aprendi, com este meu Chorão hipotético, de longe, a exercitar um olhar mais empático e entender que tanto ele quanto eu tínhamos uma eterna luta do bem contra o mal na cabeça e no peito, o que o Felipe, que se debruçou sobre a ALMA deste Marginal Alado, aprendeu? “Eu sempre me lembro que tudo que o Chorão construiu começou num pedaço de papel. Às vezes num guardanapo, às vezes numa caixa de pizza, o cara sentou e escreveu algo que ele tava pensando. Isso me faz refletir. A gente precisa escrever as coisas nas quais a gente acredita para elas virarem realidade. A gente tem este poder de fazer acontecer. Principalmente neste momento que a gente tá vivendo, o pensamento tem um poder que ninguém controla. (…) Talvez tenha me trazido este olhar. Vamos fazer. Não vamos parar. Ninguém para a gente”.

Simbora. Ou, como dizia o poeta, tcharroladrão.