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As Pobres Criaturas não são quem você pensa

Uma fantasia mezzo vitoriana, mezzo steampunk sobre uma garota que se descobre mulher – de todas as formas e com todas as sensações possíveis

Por GABRIELA FRANCO

Poor Things (ou “Pobres Criaturas”, em bom português), novo filme do diretor Yorgos Lanthimos (de “A Favorita”, que deu um Oscar de Melhor Atriz pra Olivia Colman), estreou nos cinemas em fevereiro e já chegou chegando com 11 indicações ao Oscar, conquistando prêmios importantes como Veneza e BAFTA… e igualmente levantando polêmicas.

Como vocês já devem ter lido por aí, Pobres Criaturas (adaptação do livro de mesmo nome lançado em 1992) parece se passar num período equivalente ao século XIX, mas de notados sabores steampunk, e é uma espécie de Frankenstein reverso. Ao invés de uma criatura de aparência monstruosa que passa a vida lamentando seus dissabores e decepções com a humanidade, temos Emma Stone no papel de Bella Baxter, uma mulher belíssima porém estranhíssima, ressuscitada em circunstâncias eticamente questionáveis pelo deformado médico Godwin Baxter (Willem Dafoe, incrível como sempre), a quem inclusive chama pelo singelo apelido de God (Deus) e por quem nutre um sentimento paterno cheio de “poréns”.

Em meio a uma direção de arte lindíssima, uma mistura de art nouveau e surrealismo, desfilam diversas subtramas que ajudam a dar sabor e mais contornos a esta história. Além das atividades escusas de Godwin e a convocação de um aspirante a pupilo (Max McCandles, vivido por Ramy Youssef, uma espécie de Igor sem corcunda) para cuidar de Bella, está o desenvolvimento da jovem como mulher e pessoa, que é o fio da meada do filme e, no caso, sua grande celeuma (e trunfo).

A mulher e o sexo

Pra encurtar a história, o roteiro mostra o desenvolvimento psicomotor e amadurecimento de Bella despontando em ritmo vertiginoso e ela exerce sua existência livre de amarras e convenções sociais. Isso se dá principalmente no campo sexual, especialmente quando ela conhece o vigarista Duncan Wedderburn (Mark Ruffalo, divertidíssimo).

Isso é, obviamente, uma alegoria direta à condição das mulheres na sociedade, já que somos demonizadas desde sempre por sermos seres sexuais, sentirmos desejo, existirmos, etc, etc…

Não preciso fazer aqui todo um revisionismo histórico lembrando, por exemplo, a Inquisição, que durou três séculos, que foi a maior matança de mulheres já vista na história e que tinha, entre outros pretextos, “caçar bruxas”, e muitas eram consideradas bruxas justamente por despertar desejos em homens… ou por sentirem desejos sexuais. Enfim, ser um ser sexual sempre foi um problema para mulheres. Isso porque era algo que os homens não conseguiam controlar nelas. E aí voltamos para Bella Baxter.

Ao longo do desenvolvimento de Bella em “Pobres Criaturas”, Lanthimos explora muito bem, sim, toda essa descoberta do próprio corpo e da sexualidade da mulher muitas vezes através do humor ou em situações que, para nós, seres domesticados, podem parecer absurdas – como a moça se masturbando livremente na mesa do jantar simplesmente porque sentiu vontade, por exemplo.

Logo fica evidente que Bella descobre que seu corpo pode ser uma festa, capaz de lhe dar prazer, e de proporcionar prazer a outros. E seu desabrochar sexual coincide justamente com o momento em que ela rompe as portas da casa na qual era mantida como cobaia de um experimento científico por dois homens e parte para o mundo. A partir daí ela conhece outro homem… e depois VÁRIOS homens. Observa que eles têm mais pontos em comum entre si do que diferenças.

Ela descobre também outras mulheres, entende as distinções e principalmente as complexidades e idiossincrasias entre elas, prova bebidas, experimenta comidas, dança, canta, viaja. Se transforma em alguém que sorve cada preciosa gota deste elixir chamado vida. Quando aprende a ler, devora livros e encara um estímulo sensorial diferente, iniciando um despertar intelectual. Sua vida se torna uma miríade de novos sabores, ao longo de muitas cidades e países, humores, sentimentos e pessoas. Uma história riquíssima que ela desenha para si mesma, revisitando inclusive seu passado.

O sexo e a mulher

Levantando polêmicas”, eu falei lá no começo do texto. Pois é, teve isso também sobre “Pobres Criaturas”. Teve questionamento sobre o recorte “feminista” do filme – que, vamos lá, tem muito menos pretensão a isso do que a “Barbie” de Greta Gerwig e, vamos lá, tá tudo bem também. Uma salva de palmas para filmes diferentes entre si, que eu saiba a beleza da indústria cinematográfica também está nisso. Não se trata de um filme intencionalmente feminista, como o próprio diretor tergiversa. “Na verdade, acho que é perigoso entrar muito nessas conversas porque as coisas começam a se tornar um pouco unidimensionais”, afirmou, em entrevista pra Variety. “Como se houvesse apenas esse aspecto neste filme, e é isso que estamos pensando, o que estamos tentando fazer. Tento fazer filmes mais abertos do que isso”.

Que bom, um diretor a menos usando entrevistas para fazer o papel de doutor-explica-tudo sobre a própria obra.

Mas teve principalmente um bando de xóvens conservadores no Twitter dizendo que se tratava de um filme de “sexo explícito”. Teve isso sim. Teve bem mais do que deveria.

Soa até ridículo que eu tenha que dizer isso mas, não, “Pobres Criaturas” não é um filme sobre sexo. Este não é um filme pornô ou, sei lá,  nem mesmo uma elegia ao hedonismo como “Calígula” com Malcolm McDowell ou “120 Dias de Sodoma”, de Pasolini.  É um filme com nudez, é um filme com sequências de sexo, como qualquer filme para o público adulto poderia trazer. Porque adultos fazem sexo. E o sexo nem ao menos é o ponto central da história, é parte integral dela, faz sentido pra trama, ajuda a levar a narrativa adiante. É uma alegoria do poder de Bella sobre sua própria vida, seu próprio corpo. Mas que está longe de ser seu tema central. Inclusive não é, em momento algum, explícito. É sugestionado e indireto. Algumas cenas são belíssimas, inclusive, como a de Bella com outra mulher.

E espero que eu não precise dizer mais do que isso para evitar que as pessoas façam um recorte equivocado de “Pobres Criaturas”. Por favor. 
No fim, “Pobres Criaturas” tem uma série de elementos fantásticos e uma dose considerável de nonsense, mas poderia ser a história de uma mulher como eu ou você – aliás, a vida de muitas mulheres tem muito surrealismo e nonsense, vou te contar. Errado, Yorgos Lanthimos não está.

Alguém que morreu e ganha a oportunidade de renascer. O que era apenas um corpo reanimado artificialmente acaba ganhando personalidade própria, num estudo que prova que nós só nos tornamos quem somos, de fato, quando tomamos as rédeas de nossa própria vida, quando assumimos o protagonismo de nossa própria história, quando descobrimos o que a vida pode nos oferecer, de bom e de ruim  e traçamos nossas jornadas pelo mundo afora.

“Pobres Criaturas” começa cômico, depois se torna trágico e por fim, desperta no espectador um pacotão de estranhas emoções, tais quais aquelas que Bella passa a enxergar em si mesma, quando descobre a gargalhada, o gozo e a lágrima.

E quando Bella descobre o que a faz, de fato, Bella, enquanto nome e não enquanto adjetivo, fica claro quem de fato são as Pobres Criaturas desta história.