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Peter David: um adeus que pesa mais que mil balões de fala

Com passagens memoráveis por Marvel e DC Comics, quadrinista faleceu aos 68 anos, deixando histórias icônicas que moldaram gerações de leitores – além de um questionamento fundamental sobre como as grandes editoras tratam os seus autores

Por THIAGO CARDIM


No último final de semana, o mundo dos gibis de super-heróis sofreu um baque fundamental: perdemos, aos 68 anos, o roteirista Peter David, um dos mais importantes e subestimados escritores do gênero nos últimos anos. Tal qual acontece com o igualmente competente Mark Waid, Peter David era uma espécie de “operário-padrão” – embora jamais seja lembrado entre luminares como Frank Miller, Alan Moore, Neil Gaiman, Grant Morrison ou Garth Ennis, ele sempre cumpria a missão de maneira sublime quando era convocado.

E apesar de não ter sido responsável por um “Watchmen” da vida, algumas de suas passagens pelos títulos marcavam história. Seus roteiros não apenas divertiam — eles provocavam, emocionavam, cutucavam o leitor com o garfo do pensamento crítico. Em meio a tantos autores técnicos ou formulaicos, Peter David era uma máquina de criatividade que sabia como poucos colocar alma em personagens.

Quem foi Peter David?

Peter Allen David nasceu em 23 de setembro de 1956, em Fort Meade, Maryland (EUA). Antes de se tornar um dos mais respeitados roteiristas de quadrinhos, trabalhou no departamento de vendas da Marvel. Era questão de tempo até que seu talento como contador de histórias transbordasse para as páginas das HQs.

Com um estilo afiado, recheado de humor, crítica social e profundidade psicológica, Peter David foi um dos raros autores que brilhou com igual intensidade nas duas maiores editoras de quadrinhos: Marvel e DC Comics. Além dos quadrinhos, escreveu romances — incluindo títulos de Star Trek e Babylon 5 — e roteiros para séries de TV.

Entre Marvel e DC: uma ponte de criatividade

Na Marvel Comics, apesar das passagens pela fase mais autoral do X-Factor (com enfoque em personagens como o Homem-Múltiplo e Fortão, mesclando investigação, drama e temas adultos) e da criação do Homem-Aranha 2099, David é muito lembrado pela sensacional passagem pelo gibi do Incrível Hulk – que definiu muito do que conhecemos do personagem hoje.

O autor assumiu a série por 12 anos e trouxe uma abordagem psicológica inédita para Bruce Banner, sendo o primeiro a trabalhar a questão das múltiplas personalidades do monstrão (e criando, inclusive, ninguém menos do que o Sr. Tira-Teima, a versão cinzenta e sacana do Hulk, que os fãs tanto amam). David explorou temas como transtornos de identidade, violência doméstica, AIDS e religião. Sua edição #377 é considerada uma das melhores HQs do personagem, apresentando o surgimento do Professor Hulk.

Já na DC Comics, ele tem duas passagens memoráveis, a começar pelo Aquaman. Sob sua batuta, em plena loucura dos anos 1990, o outrora zoado “herói submarino” ganhou profundidade e respeito. A perda da mão e a adoção de um arpão como arma fizeram parte de uma reformulação sombria e épica do personagem, uma espécie de Conan do fundo do mar. Se você curtiu a abordagem de Jason Momoa ao longo de todo o #Snyderverse, saiba que deve MUITO ao conceito de Peter David.

Já com a Supergirl, o quadrinista explorou a complexidade da personagem Linda Danvers, misturando identidade, fé, sacrifício e redenção, gerando uma das fases mais únicas da personagem.

Saúde debilitada e resistência até o fim

Nos últimos anos, Peter David enfrentou sérias complicações de saúde: teve derrames, um infarto e foi diagnosticado com doenças renais. A perda do acesso ao sistema de saúde (Medicaid) nos EUA levou sua família a criar uma vaquinha online — que arrecadou mais de 126 mil dólares para cobrir despesas médicas.

Mesmo fragilizado, ele não parou. Continuou escrevendo até seus últimos dias, incluindo a minissérie Maestro, provando que a paixão pelo ofício seguia intacta.

Peter David faleceu em 24 de maio de 2025.

Aqui, cabe uma reflexão fundamental: David e sua família ficaram até o último minuto lutando pela ajuda dos fãs, para poder cuidar de sua saúde em frangalhos. Porém… estamos falando do autor responsável pelo conceito do Professor Hulk, a mente de Bruce Banner controlando o corpo titânico do Golias Esmeralda, como pudemos ver recentemente no MCU, com a interpretação de Mark Ruffalo. Também estamos falando do autor responsável pela criação de Miguel O’Hara, o Aranha 2099, que foi o antagonista da animação de sucesso Homem-Aranha: Através do Aranhaverso. Apenas estes dois exemplos já gerariam royalties o suficiente para que o quadrinista pudesse ter um atendimento minimamente decente.

Aliás, vou além: depois de tantos serviços prestados tanto pra Marvel quanto pra DC, o que custaria colocar o sujeito como parte de seu plano de saúde integrado? Era o MÍNIMO.

“Veja bem, embora a Marvel tenha construído um império que vale bilhões às custas de seus criadores, o modelo de remuneração não acompanhou o sucesso”, disse recentemente, em carta aberta no Instagram, o desenhista Mike Deodato – que cocriou a Coração de Ferro, cuja série de TV estreia no Disney+ em breve, com o roteirista Brian Michael Bendis. “Quando um personagem ao qual você dedicou seu coração ajuda a alimentar o motor de uma máquina multibilionária, uma pequena parte desse sucesso parece justa”.

Ele reforça que criadores não pedem bilhões ou mesmo milhões, mas apenas um aceno, um pouco de reconhecimento e uma parcela que reflita a contribuição que fizeram. “Espero que um dia as empresas que prosperam com nossa imaginação realmente reconheçam o valor que trazemos à mesa. (…) Marvel, você pode fazer melhor. E eu realmente espero que você faça, pelo bem dos personagens que amamos e dos criadores que os dão vida”.

Top 5 histórias essenciais de Peter David

Aqui vai uma lista obrigatória para quem quer conhecer (ou revisitar) o melhor do autor:

1. O Incrível Hulk #377 (1991)
A edição definitiva da fusão entre as múltiplas personalidades de Banner — cinza, selvagem e cientista — dando origem ao “Professor Hulk”.

2. The Death of Jean DeWolff – Spectacular Spider-Man #107–110 (1985)
Um arco tenso, sombrio e impactante do Homem-Aranha, abordando assassinato, fanatismo religioso e a falibilidade dos heróis.

3. X-Factor Vol. 1 (a partir do #71)
Uma equipe mutante fora do mainstream, com roteiros ousados, conflitos internos e carga dramática digna de novela noir.

4. Aquaman Vol. 5 (1994–1998)
A fase em que o Rei dos Mares virou badass. Tramas políticas, Atlântida em guerra, barbárie, mitologia e um novo status quo. Além de uma das mãos substituída por um arpão, mas é claro.

5. Spider-Man 2099 #1–46 (1992–1996)
Num futuro cyberpunk, Miguel O’Hara luta contra megacorporações e dilemas éticos — tudo com o DNA de Peter David: inteligente, crítico e emocional.



O legado de um contador de histórias imortal

Peter David será lembrado como um dos maiores roteiristas da história dos quadrinhos. Suas histórias eram divertidas, sim — mas também desafiavam, sensibilizavam e, acima de tudo, respeitavam a inteligência do leitor.

Ele mostrou que super-heróis podiam ser engraçados sem perder seriedade, e que podiam ser humanos mesmo com superpoderes.

Hoje, os balões de fala estão mais silenciosos. Mas a voz de Peter David segue ecoando em cada página que ele escreveu.

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