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Safaa and the Tent: HQ que transforma dor em testemunho

Obra da quadrinista palestina Safaa Odah é premiada internacionalmente e ganha voz ampliada para o cotidiano da Faixa de Gaza sob bombardeios  

Por THIAGO CARDIM

Em meio ao bombardeio constante, à escassez de recursos e à morte rondando diariamente graças ao genocídio televisionado, a quadrinista palestina Safaa Odah ergueu sua arte como resistência: nasceu Safaa and the Tent, diário ilustrado de vida sob cerco em Gaza, lançado em março de 2025.

Essa obra não recebeu edição no Brasil (ainda!), mas já ecoa como um dos quadrinhos mais potentes deste ano, oferecendo uma voz visceral, humanizada e urgente sobre o cotidiano palestino em meio aos escombros. Todos os lucros da primeira tiragem são revertidos diretamente para Safaa, com total e completa justiça.

Safaa Odah é cartunista, animadora e possui mestrado em Psicologia. Ela vive justamente na faixa de Gaza mas, desde o início dos conflitos em outubro de 2023, já foi deslocada diversas vezes – nos últimos onze meses, ela viveu em Khan Younis, em uma tenda que, após a destruição de sua casa em Rafah, se tornou tanto um novo lar quanto um espaço de trabalho.

Aliás, a tenda (que virou título da publicação ao lado de seu nome), por vezes torna-se sua tela — já que papel e suprimentos gráficos tornaram-se obviamente escassos. Ela desenha nas paredes do tecido da tenda, como forma de registrar, comunicar e resistir.

“Eu tinha um tablet”, explica Safaa, em entrevista ao The News Arab. “Mas desde o início da guerra, e devido aos constantes cortes de energia, meus desenhos se limitam a caneta e papel. Eu desenhava nas laterais da tenda porque meu país está sob um severo bloqueio israelense e as ferramentas necessárias para desenhar são escassas. Não consegui encontrar papel, então tive que desenhar no tecido da tenda para transmitir minhas mensagens e comunicar o sofrimento que estamos vivenciando. A tenda se tornou o único meio disponível na época”.

As tiras que compõem Safaa and the Tent (e vinham sendo, até o momento, publicadas no Instagram dela), vão de outubro de 2023 a dezembro de 2024, conectando narrativas visuais que mesclam luto, medo, esperança, memória e humanidade. Nada Hodali, tradutora palestina, foi apresentada ao trabalho da quadrinista pelo cartunista palestino Mohammad Sabaaneh e ajudou a converter essas histórias do árabe para o inglês, pensando justamente no lançamento internacional.

“Apesar das imagens angustiantes em alguns dos quadrinhos, Safaa inclui charges bem-humoradas, felizes e alegres em meio à tristeza, à morte e ao desespero que os cercam — e os envenenam — diariamente”, opina Nada, em conversa com a revista Arablit. “É possível ver o que os palestinos em Gaza estavam pensando ao longo do ano, onde este quadrinho se passa: seus altos e baixos, a esperança de um cessar-fogo, o rompimento inevitável do cessar-fogo, o deslocamento forçado, a fome, a humilhação e assim por diante. O quadrinho leva o leitor a uma montanha-russa de emoções. Considerando que pessoas ao redor do mundo não viram como é a situação em campo quando uma guerra irrompe na Palestina, mais uma vez, é essencial que leiam este livro, vejam o que realmente acontece, para entender melhor a causa palestina e o sofrimento dos palestinos”.

A tradutora reforça ainda que, o que impressiona na história em quadrinhos de Safaa é como ela poeticamente demonstra a importância e o enriquecimento dos acontecimentos cotidianos. “De uma mãe apoiando o filho, a uma senhora apoiando a amiga, a um marido cuidando da família. Tudo é amplificado; o que consideramos tarefas ‘simples’ é visto sob uma lente diferente, dadas as dificuldades, a voz interior que a maioria de nós não consegue expressar e os pensamentos que não conseguimos gritar”.

Trajetória artística e ativismo

Embora Safaa and the Tent seja a obra mais recente e visível, Safaa já desenhava bem antes daquele fatídico 7 de outubro de 2023, comentando o cotidiano de Gaza em suas redes sociais. Ela também coordena oficinas chamadas Little Painter (“Pequenos Pintores”), dirigidas a crianças deslocadas em Gaza. Através dessas oficinas, busca oferecer um espaço de expressão, distração e terapia emocional em meio ao caos.

“Esta é uma coletânea de histórias em quadrinhos e ilustrações que retratam a dolorosa realidade que tenho vivenciado desde o início da guerra. A maioria dos desenhos reflete cenas cotidianas do genocídio que já dura dezoito meses em Gaza”, disse Safaa em abril, antes do atual acordo que, esperamos, seja cumprido por um certo assassino em massa de nome Benjamin Netanyahu. “Minha história não é diferente da de qualquer pessoa em perigo ou afetada pela guerra; temos muitas semelhanças. Percebi que caminhamos em um labirinto escuro, um labirinto sem fronteiras”.

O reconhecimento internacional veio agora em 2025, quando Odah recebeu um Prêmio Especial do LICAF (Lakes International Comic Art Festival) por seu esforço como artista e mobilizadora cultural — não apenas pela qualidade estética de seu quadrinho, mas também por seu papel social e de resistência em meio à guerra.

Ao conceder o prêmio, o festival destacou que sua voz artística serve como testemunho para o mundo.

O traço e a estética de Safaa Odah

O estilo de Safaa é marcado por traços simples, preto e branco com sombreamentos de azul, uma estética limpa, dolorosa, direta, do tipo que recusa o ornamento excessivo em favor da clareza emocional. De acordo com o site especializado em quadrinhos Broken Frontier, em seu estilo destaca-se a capacidade de alternar entre quadros simbólicos, metáforas visuais e momentos narrativos densos, tudo com minimalismo expressivo.

A obra recebeu ainda elogios como “algumas das imagens mais poderosas e comoventes vindas de Gaza que não são fotos”, vindos direto de ninguém menos do que Joe Sacco, autor do clássico Palestina e referência pro jornalismo em quadrinhos.

A escolha de desenhar nas paredes da tenda, por falta de papel, não é mera improvisação: ela torna-se parte da narrativa — o tecido que abriga famílias também carrega suas dores e suas vozes. Esse uso do meio como mensagem reforça a potência simbólica de sua obra.

Alguns exemplos do que pode ser visto na obra, entre os destaques feitos pela própria tradutora: a HQ de 5 de janeiro de 2024, “O Sonho de um Refugiado”, retrata como pode ser único simplesmente cantar uma canção de ninar para um bebê enquanto ele adormece, sem os sons de bombas e mísseis ao redor da mãe e do filho. Já no quadrinho de 21 de janeiro de 2024, um homem procura sua alma, dizendo “Sinto falta da minha alma… onde está você, minha alma?”.

E o de 18 de fevereiro de 2024 se foca em mostrar que, “apesar de tudo”, os palestinos em Gaza tentam manter suas vidas: as pessoas se casando, terminando seus mestrados e doutorados e se agarrando à vida em todos os sentidos do mundo enquanto tudo ao redor desabava.

Por que Safaa and the Tent importa — para os quadrinhos e para o mundo

– Porque resgata narrativas silenciadas: a guerra em Gaza é retratada por quem vive nela, mostrando a dor mas tentando não perder a ternura.

– Porque mescla arte, ativismo e testemunho: não é só quadrinho; é memória em curso.

– Porque expande o papel social do quadrinho: transformando tenda, tecido e traço em canal de denúncia cultural.

– Porque pode inaugurar uma porta para que editoras brasileiras se interessem por autores árabes pós-guerra, ampliando ainda mais o repertório editorial nacional.