
Quadrinistas: pequeno manual pra grandes dores de cabeça
Trabalhar com arte, muitas vezes, faz com que você tenha que lidar TAMBÉM com a parte chata de contratos e afins – e é por isso que o quadrinista Zé Wellington desenvolveu um material pra tentar ajudar toda a galera independente
Por THIAGO CARDIM
Foto: Ojus Jaiswal
Uma coisa que eu repeti ao longo de toda a minha vida como jornalista e produtor de conteúdo de entretenimento/cultura pop, fosse trampando n’A ARCA, no JUDÃO ou aqui mesmo no nosso combo de Gibizilla + Imagina Se Pega no Olho: eu quero produzir. Fazer matérias, entrevistas, roteiros, gravar vídeos, apresentar podcasts. Esta é a parte legal da história.
O que NÃO é legal é ter que, ao mesmo tempo, ser editor de áudio e vídeo, programador, coordenador de redes sociais, gerente de vendas, analista financeiro, representante jurídico e por aí vai…
Mas a gente aqui não é rico, né? Não tem grana pra pagar uma equipe dedicada a fazer cada uma destas coisas pensando em projetos que mal nos dão qualquer dinheiro. Então, já sabe: tudo acaba ficando na nossa mão e, obviamente, só depois das 19h, que é quando se encerra o expediente do tal do emprego número 1, que é o que de fato coloca comida na nossa mesa.
Costumo ouvir sempre este tipo de questão dos amigos que são artistas, de alguma forma, quer sejam eles músicos ou… quadrinistas.
O querido Zé Wellington, autor de Cangaço Overdrive e que já entrevistei pelo menos umas três vezes ao longo dos últimos anos, também sente na pele este acúmulo de funções, em especial num universo em que os quadrinistas independentes (sejam eles roteiristas, desenhistas, arte-finalistas, coloristas…) não são as pessoas que mais entendem no mundo dos meandros dos direitos autorais ou questões contratuais.
O Zé conversou com profissionais de quadrinhos de todo o Brasil, dentro da pesquisa do seu mestrado em Propriedade Intelectual e Transferência de Tecnologia para Inovação – PROFNIT, realizado no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará – IFCE. O objetivo era levantar quais as principais dúvidas com relação aos Direitos de Autor (popularmente conhecidos como direitos autorais). Mas acabou gerando mais uma coisa…

Eis que surge… O MANUAL!
Mas a gente pode chamar mesmo de Direitos Autorais para Histórias em Quadrinhos: Diálogos possíveis entre a lei e a criação de HQs. Tamos falando de um guia prático que desvenda as leis e boas práticas para proteger criações, negociar contratos justos e evitar armadilhas jurídicas.
Do registro de obras à gestão de licenças e direitos de adaptação, o manual oferece explicações claras e dicas para que os quadrinistas possam publicar, vender e expandir suas obras com segurança e autonomia, com texto acessível, informações resumidas e num formato compatível para leitura em computadores, tablets e smartphones.
“Na minha opinião, primeiramente o quadrinista precisa saber que não é obrigatório fazer nenhum registro. O simples fato de colocar o trabalho no mundo já garante proteção ao autor, segundo nossa Legislação de Direitos Autorais”, conta ele, em entrevista ao Gibizilla.
Em segundo lugar, sua principal recomendação é contratualizar todas as relações que você tem quando publica um trabalho, seja com quem vai publicar, seja com os parceiros no processo. “O contrato é muito mais do que esse momento chato de troca de assinaturas: é uma oportunidade para as partes conversarem sobre suas intenções e até onde vão seus direitos e deveres. E essa conversa tem que acontecer antes do trabalho iniciar”, explica.
Ele lembra que, em relação aos outros segmentos de entretenimento, o mercado de histórias em quadrinhos ainda é muito pequeno – e ele fica menor ainda quando você filtra para a produção nacional autoral. “Isso gera várias fragilidades e a falta de conhecimento na área dos Direitos de Autor é uma delas. Já existem leis robustas, baseadas em convenções internacionais, que garantem os direitos dos quadrinistas”, revela.
O que faltaria agora, portanto, é que a informação chegue ao autor “traduzida”, ou seja, sem as barreiras do juridiquês. “Mas, sim, é necessário organização política, especialmente porque há vários projetos de lei que podem alterar a atual legislação e fragilizarem ainda mais os autores. Tirando a carapaça de pesquisador de direitos autorais e vestindo a de autor, vejo que existem movimentos políticos muito importantes envolvendo quadrinistas no momento, alguns dos quais faço parte, e que já se fala bastante em direitos autorais nos debates”.
E sim, vamos falar dela… a Inteligência Artificial
Sabemos bem que, neste mundo cada vez mais digital, as redes sociais e as inteligências artificiais levantaram ainda mais questões sobre a utilização de obras sem a autorização dos seus criadores. Esta última, aliás, tem sido uma dor de cabeça constante para os artistas, que ainda não conseguem entender bem o que deve acontecer daqui pra frente quando o assunto são “direitos autorais”.
“Além de todo o impacto no mercado de trabalho, no campo dos Direitos de Autor às inteligências artificiais generativas podem trazer grandes prejuízos para os autores”, conta Zé. “Nos Estados Unidos, criadores já se organizaram no passado para solicitar que suas artes não fossem usadas para treinar IAs. Até porque fazer isso sem a autorização dos autores é uma infração nos Direitos de Autor. É preciso do consentimento do autor para que sua arte esteja em bancos de dados de big techs”.
O Zé conta que inclusive existem editoras que já negociam com autores o uso de obras para treinar IAs, o que já é um avanço, já que pelo menos envolve a autorização do autor e uma remuneração por isso. “Agora é preciso luta política para evitar que haja flexibilização da nossa legislação. As grandes empresas já pressionam para ter liberdades com relação à IAs, porque isso envolve barateamento de mão-de-obra. É preciso estar atento aos abusos delas”.
O manual “Direitos Autorais para Histórias em Quadrinhos: Diálogos possíveis entre a lei e a criação de HQs” é uma publicação digital que pode ser adquirida gratuitamente em PDF ou ainda na Amazon e no Google Books. Todos os links de download estão disponíveis no site do quadrinista Zé Wellington (através deste link).