Jornalismo de cultura pop com um jeitinho brasileiro.

Lovecraft é mero coadjuvante na série que leva seu nome

E vamos combinar que AINDA BEM, porque “Lovecraft Country” tem horrores muito mais urgentes pra esfregar toda semana na nossa cara…

Por THIAGO CARDIM

Dia destes, me deparei com o post de um conhecido nas redes sociais no qual ele se dizia “decepcionadíssimo” com a série Lovecraft Country, produção da HBO baseada no livro de Matt Ruff. Segundo o cara, o programa falhava porque não sabia retratar o horror cósmico do autor cujo nome vai no título da série. E aí seguia uma sequência de regras que eles deveriam seguir, de monstrengos que deveriam ter aparecido…

Assim… Tá. Respira.

Eu nem preciso dizer que a cagação de regra veio justamente de um cara BRANCO. E que, definitivamente, parece não ter entendido que Lovecraft Country não é sobre H.P. Lovecraft. Nunca foi a ideia. Lovecraft é citado na série, Lovecraft é um autor consagrado na ambientação da série e, para quem conhece minimamente a respeito da obra do escritor americano ALÉM das divindades monstruosas como Cthulhu, as referências estão todas lá. Tem religião, tem a força do destino, tem cultos ocultistas, tem o medo da evolução científica…

Mas Lovecraft, senhoras e senhores, é meramente PANO DE FUNDO em Lovecraft Country. Sei que, pra quem tá acompanhando a série e sacou qual é, pode ser que eu esteja chovendo no molhado. Só que, definitivamente, conforme o exemplo acima deixa claro, tem uma outra galera que não sacou, então acho que vale o reforço aqui (até porque, antes de qualquer coisa, a série é boa pra diabo e vocês DEVIAM estar vendo, com ou sem Lovecraft).

Chame você de “produto de sua era” ou não, o fato é que Lovecraft, o autor, era racista PRA CARALHO. Tanto quanto Monteiro Lobato, amiguinhos brasileiros. E isso sempre ficou claríssimo em sua obra, toda vez que pintava nos seus textos um personagem de pele escura. “Feras de aspecto semi-humano, repletas de vícios”, descrevia ele sobre os negros no poema On the Creation of Niggers, de 1912. E não acabou aí, na real. Os exemplos são MUITOS. Logo, o que a showrunner Misha Green e o produtor Jordan Peele fizeram foi dar um “chega pra lá” no Lovecraft dentro de seu próprio universo e trazer os negros para o primeiro plano da história. Genial.

Estamos em plenos anos 1950, em New England, região a nordeste dos EUA que reúne estados como Massachusetts, Maine, Rhode Island e Connecticut. Racismo bombando, bares e restaurantes abertamente proibindo a presença de pessoas de cor, vizinhanças inteiras atacando todo e qualquer negro que OUSE vir morar ao seu lado, xerifes executando toques de recolher… E aí eis que começamos a ser apresentados não apenas aos personagens, em especial Atticus Freeman (Jonathan Majors) e a espetacular Letitia “Leti” Lewis (Jurnee Smollett), mas também a uma série de subtramas sobrenaturais que os envolvem e os cercam como uma teia.

Só que, minha gente, a tal ordem de magos Filhos de Adão, assim com o tal Livro dos Nomes que é uma versão aparentemente “da luz” do clássico Necronomicon, são a coisa que MENOS importa aqui. Lovecraft Country tem um clima quase que de antologia, já que cada episódio acaba tendo um clima meio próprio, tratando de um tipo diferente de horror e podendo até soar como uma história “desconectada”. Eu, particularmente, discordo.

Porque o que os conecta, todos os seis episódios até agora, apesar da sensação de que não existe uma história única (e ela existe, vamos deixar bem claro aqui) são Atticus, Leti… e o RACISMO. Tá aí a cola. Este, sim, é o grande horror, muito maior do que qualquer magia, monstro ou fantasma que esteja ao seu redor. É o temor do que os brancos possam fazer que faz com que, a cada semana, a ameaça sobrenatural da vez ganhe contornos ainda maiores, mais intensos, que faz a tensão subir e grude a gente na ponta da poltrona.

Para este que vos escreve, que é branco, é sempre uma mistura horrenda de medo, nojo e VERGONHA. No episódio 3, Holy Ghost, que carrega um lance meio de “casa mal-assombrada”, os espíritos me assustam muito menos do que os olhares dos vizinhos, aquela asseada “gente de bem”, tadinhos, incomodados com a música, com a dança… Mas que, DE VERDADE, estão bem incomodados é com OUTRA COISA. O poder simbólico da sequência dos carros buzinando, em plena luz do dia, carregados por olhares cheios de julgamento e por um silêncio que diz muito, me arrepia só de lembrar.

Lovecraft Country é uma série de terror. Sim, isso é. Mas sobre um tipo de terror bem diferente. Como o de Corra!, o filme que não por acaso é dirigido pelo mesmo Jordan Peel que produz esta série. Um terror bem vivo, que quem é negro vive na pele, todos os dias. Não só nos anos 1950, como HOJE. Não só nos EUA como AQUI, no Brasil.

De qualquer maneira, assim, sugiro não ficar ouvindo muito OS BRANCOS a respeito desta série, tá. Como homem branco, fico feliz por você ter lido meu texto, me dado ouvidos, coisa e tal, mas faz uma coisa – pra entender BEM sobre Lovecraft Country, do jeito que se DEVE, dá uma olhada na série de vídeos que a Andreza Delgado, da Perifacon, tem feito semanalmente sobre o assunto. Olha só a playlist atualizada abaixo.

Aqui, a gente tem outra playlist, também atualizada episódio a episódio da série, do canal da Mikannn. Sim, sim, ela é branca. Mas a cada vídeo sobre a série, ela convida um criador de conteúdo negro para comentar o capítulo mais atual, o que é uma iniciativa BEM foda. Ela já trocou ideia com o Load (Omelete), com a Milena (Enevoada), com o Matheus Mendes, com a Anne (Preta Nerd Burning Hell) e com a Carissa Vieira. Os links tão nos nomes deles para que você também os siga. E, se for branco como eu, ESCUTE.