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O papel do roteirista nestas tais histórias em quadrinhos

Depois de enfim baixar a poeira de uma polêmica (vazia, leia-se) nas redes sociais que colocava em xeque o talento de um quadrinista que NÃO desenha, fomos trocar uma ideia com dois escritores brasileiros de gibis sobre este papo…

Por THIAGO CARDIM

Coisa de uns dois meses atrás, quando estava terminando de montar o Gibizilla para entrar de vez no ar, me deparei com uma discussão aquecida no Twitter da galera que faz gibis no Brasil – por algum motivo que já nem lembro mais, alguém levantou a bola de que um bom quadrinista, um quadrinista DE VERDADE, é aquele que não apenas escreve mas TAMBÉM desenha suas histórias. Teve gente contra, gente a favor, gente só botando lenha na fogueira e querendo ver o circo pegar fogo, mas você bem pode imaginar que uma categoria em particular ficou bastante incomodada com esta conversa: os roteiristas. Aqueles que são especializados em escrever e NÃO são desenhistas, entenda-se bem. E logo eu quis transformar isso em pauta.

“Eu fico meio nervosa quando vejo esse tipo de coisa porque sempre tem piadas, comentários maldosos e gente esnobando roteirista no meio”, desabafa Larissa Palmieri, em papo exclusivo com o Gibizilla. “É um tanto desrespeitoso não considerar um trampo real qualquer etapa da produção que não é feita pelo desenhista, não apenas o roteiro”. Ela faz questão de deixar claro que quadrinista é todo mundo que está envolvido em um projeto de quadrinhos: o roteirista, o editor, o colorista e o lettering. Todos são artistas trabalhando como coletivo para contar uma história.

“Uma série de fatores torna a situação de quem faz roteiros no Brasil complicada, por assim dizer”, explica o também roteirista Alessio Esteves, dando ainda um contexto histórico. “E falo que é aqui no Brasil porque a indústria nos EUA e Europa existe uma tradição, até por questões de produção industrial, de deixar cada papel dentro do gibi bem separado. Tanto que a gente reconhece os grandes nomes de lá de fora, gosta deles e muitas vezes quem escreve uma HQ é fator decisivo na compra (ou não compra, hehehehe…) de um gibi”.

Ele reforça ainda que sua geração, aquela que nasceu nos anos 1980, cresceu lendo Turma da Mônica sem saber quem escrevia e desenhava as histórias. “Por mais que soubéssemos que não era o Maurício que fazia tudo, não havia os créditos dos artistas. Mesma coisa na Disney. Eu mesmo fui apresentado à ideia de conhecer os artistas envolvidos só quando comecei a ler super-heróis na Marvel”, diz. Pra completar, claro, temos também no Brasil diversos artistas de renome que escreviam e desenhavam as suas histórias – Angeli, Glauco, Laerte, Adão e por aí vai. “Claro que isso também aconteceu por questões de produção da nossa indústria, mas se você me perguntar agora os nomes de grandes roteiristas (que escreviam e não desenhavam) da HQ nacional dos anos 1980-1990, não vou saber te responder de cabeça. E isso é grave”.

Os nossos convidados são…

Bom, vou contextualizar nossos entrevistados aqui. A Larissa, que tem quase 32 anos, é do ABC Paulista, publicitária de formação e designer no quesito “colocar comida na mesa”. Escrevendo sobre cultura pop na internet no falecido blog Gatos e Cérebros, achou que podia se aprofundar mais ao fazer uma oficina de roteiro de HQ em 2015. Se apaixonou, começou a estudar o assunto e, em 2017, publicou uma história na coletânea Space Opera em Quadrinhos, da Editora Draco. De lá pra cá, escreveu terror, erótico, suspense. Tem trabalhos nos recém-premiados VHS e Mulheres & Quadrinhos, além de Na Quebrada, Rancho do Corvo Dourado e Delirium Tremens. Publicou duas histórias solo curtas (Hacking Wave e Gynoide) e, ano que vem, dará um novo passo e irá publicar sua primeira HQ longa, com quase 100 páginas.

Já o Alessio, além de escritor e roteirista de quadrinhos, cuida de toda a parte de conteúdo de uma consultoria de experiência do usuário (a UXPertise) e é um dos sócios da Excelsior Comic Shop, um sebo virtual de gibis. Amava aula de redação na escola e fez o curso de roteiro para histórias em quadrinhos na Quanta Academia de Artes por indicação de amigos. Sua estreia foi na coletânea Gibi Quântico 1, em 2014, com uma HQ que envolvia um “amor de metrô”. De lá pra cá, participou de diversas coletâneas, publicou um álbum com alguns amigos pela Sesi-Editora e algumas coisas independentes. Atualmente, produz a HQ anual DestiNation com o Lobo Loss, que mistura cyberpunk com faroeste e tá indo para a 3a edição, além de finalizar a 1a parte de uma biografia do Zé Pelintra em quadrinhos com o Bruno Brunelli. Sempre tenta soltar pelo menos um gibi por ano.

Mas voltando ao assunto, agora que você sacou que quem tá falando tem propriedade sobre o assunto, o Alessio crava que, sim, existe um imaginário popular de que desenhar é mais complexo que escrever e que alguém que escreve e desenha seria um artista mais completo que a pessoa que “só escreve”. Mas relembra duas coisas: você fazer tudo é bem diferente de ser bom em tudo e uma HQ sem roteiro acaba na prática sendo um artbook. “Lindo, mas sem trama nenhuma”. Bingo.

Para ele, ajuda nesta percepção o fato de que desenhistas podem postar rascunhos ou prévias de seus trabalhos. “No nosso caso, tudo o que fazemos antes dos desenhos começarem é um blocão de texto, né?”, brinca. Mas ele acredita que este cenário está mudando. “Eu mesmo sou fruto desta mudança, aliás. Cada vez mais pessoas estão percebendo que não precisa saber desenhar para fazer HQ e o número crescente de roteiristas surgindo é a prova disso”.

“O que eu acho é que como qualquer outra área, algumas pessoas vivem muito pelos holofotes e se deslumbram demais com certas coisas”, desabafa Larissa. “Existem outros caminhos. Eu sempre me inspiro e tenho grande admiração pela galera que tá com a bunda na cadeira, trabalhando arduamente ao invés e discutir o sexo dos anjos e causando intriga entre classes”. Ela lembra que, certa vez, numa dessas caixinhas de perguntas do Instagram, a desenhista Bilquis Evely compartilhou algo que o Neil Gaiman disse para ela e que a Lari abraçou pra vida: trabalhe apenas com quem te trata bem. “E acho que isso resume a questão. Ele é um grande escritor, gigante, e é muito mais lembrado do que os desenhistas dos seus quadrinhos na maioria das vezes. Tenho certeza que, além do evidente talento, ele está onde está pois teve seu trabalho valorizado como deveria por outros grandes profissionais do meio”. 

E como funciona a dinâmica de vocês com os desenhistas?

Tanto ele quanto ela respondem, de imediato, que sempre vai depender do projeto e das pessoas com as quais você vai trabalhar. “Eu já trabalhei com muita gente diferente e a dinâmica varia pra caramba”, revela Larissa. “Quando há um editor, ele que faz o meio de campo e busca o equilíbrio entre as coisas. Eu particularmente sou muito preocupada em dar toda assistência possível ao desenhista com uma verdadeira bíblia de referências, fotos, informações e detalhes. Mas não é sempre que temos tempo pra isso…”.  

Para o Alessio, o que mais acontece é normalmente o texto ditar tudo porque vem antes mesmo ou o desenhista vem com a ideia e deixa a parte “chata” de transformar isso em um roteiro pra ele. “Quando um projeto envolve editora, eles já escolhem times de roteiristas e desenhistas onde texto e arte se encaixam e a gente segue o jogo. Quase sempre funciona”.

A parte de conceito de personagens sempre é feita a quatro mãos, até chegar em algo que satisfaça todo mundo. Neste processo rola muita conversa e definições de algumas coisas que acabam facilitando o trabalho de ambos depois, pois todo mundo fica no mesmo barco. “Em relação ao roteiro, eu só aponto mesmo o que é necessário ter nas cenas e deixo o desenhista livre pra fazer a narrativa da página, salvas exceções que sejam muito importantes pra história”, conta a Lari. “Costumo nos roteiros dar sugestões de diagramação de página, mas sempre deixo claro para o desenhista que ele manja mais de visual do que eu e pode criar à vontade a partir daquilo”, complementa o Alessio. “Pode acontecer de ter uma mudança que impacte na narrativa e aí tem que negociar o que vamos priorizar, mas isso raramente acontece comigo”.

Umas dicas pra quem quer trabalhar com isso, então

Para a Larissa, uma parada indispensável é o bom e velho Google Docs. “Nunca falha e dá pra escrever no metrô, no ônibus, encolhida na cama embaixo das cobertas quando tá muito frio… Fora a possibilidade de fazer comentários e outras vantagens”. Além disso, na hora da criação, ela não dispensa os clássicos papel e caneta. Estes também estão na lista de favoritos do Alessio, que usa pra rascunhar as páginas – antes de escrever no Word e também usar o Google Drive para compartilhar com parceiros. “E o Excel para montar os bonecos das revistas antes de montar o arquivo para mandar para a gráfica”.

Ele lembra ainda que é essencial ter alguma coisa para anotações diversas. “Tenho no meu celular o Evernote (ótimo para criar e organizar notas) e grupos comigo mesmo no Whatsapp e Telegram, onde jogo coisas pra ver depois”. E como ele tá aprendendo a balonizar, começou a mexer no Illustrator. “Mas é algo que tô beeeeem no começo…”.

Legal, mas COMO começar a trampar com roteiro? Eles recomendam algum curso ou é mais na raça mesmo? “Ah, eu fiz muitos cursos. Mas essa sou eu. Gosto de ter mestres, de estar numa sala de aula, trocando experiências, fazendo dinâmicas e exercícios. O legal é conhecer outras pessoas”, diz Lari. “É a melhor forma de conseguir achar parcerias e ser publicado, eu acho essa interação e convivência em volta do processo criativo muito importante”.

O Alessio não acha que fazer um curso seja obrigatório, mas é importante para organizar ideias, desenvolver uma metodologia e, principalmente, como a Larissa reforçou, fazer network, entrar na comunidade. “Existem cursos de roteiro para HQ na Quanta Academia de Artes e na HQ em Foco, que são locais que frequento e recomendo fortemente. Então, quem puder fazer, vai sem medo!”.

Onde estamos e pra onde vamos

Assim como um desenhista tem seu traço próprio, é claro que um roteirista tem suas marcas no texto – é muito fácil reconhecer, por exemplo, o trampo de um Gaiman, citado pela Lari lá em cima, ou mesmo de um Alan Moore, Garth Ennis… Mas será que eles já olham em seus trabalhos uma assinatura de estilo no roteiro que o leitor identifica de imediato? “Não consigo afirmar isso. Eu acho que estou melhorando muito com o passar do tempo mas ainda preciso comer muito arroz com feijão pra te afirmar que tenho um estilo definido”, admite Larissa. “Eu estou em um momento de experimentação total, fazendo histórias mais longas, e tudo isso é um desafio gigante. Não há gibi que eu tenha certeza absoluta do que estou fazendo pois sempre há algo novo pra alcançar e dominar”.

O Alessio por vezes se pega pensando nisso e sua primeira resposta, pá pum, costuma ser “ainda é cedo pra isso”. Mas… “Aí lembro que já tenho, tipo, SEIS ANOS de carreira, tal. Mesmo assim, como a maior parte dos meus trabalhos ainda são histórias fechadas em coletâneas temáticas, fica um pouco difícil achar esta linha. E sei lá se sou eu quem deveria apontar isso. Deixo a bucha para vocês que me leem”, brinca. “Mas só para não ficar sem resposta, costumam elogiar muito meus diálogos. Realmente gasto um bom tempo neles, com leituras em voz alta, criação de vocabulários e frases comuns, sempre pensando que o leitor tem que ‘ouvir’ uma vez diferente em cada balão. Então, hoje, eu diria que minha força está na construção de diálogos”.

Para alcançar estes novos patamares, então, claro que pergunto que roteiristas eles admiram. E a Larissa nem pensa duas vezes pra mencionar o primeiro nome. “Daniel Esteves. Não por ele ser meu editor e professor, mas você já leu os quadrinhos desse cara? Sério, ele escreve bem demais. Recomendo O Último Assalto. Eu amo tudo o que o Lilo Parra faz também. Nossa, ele me fez chorar lendo La Dansarina. Sempre jogo isso na cara dele. Ah, não posso deixar de citar minha mestra Marcela Godoy. Essa mulher escreve absurdamente bem e se você quiser uma referência leia Fractal. Outro que me emocionou demais foi o Rafael Calça com a MSP do Jeremias, que parece que saiu do fundo da alma”.

O Alessio também cita o Lillo e ainda acrescenta Marcelo Cassaro, Laudo Ferreira, Pablo Casado, LoveLove6 e Airton Marinho. “Tá, alguns desenham também, eu sei. Mas tô falando de roteiro aqui”, esclarece. “É muito bacana poder sentar na mesa de bar com gente que praticamente formou sua leitura e escrita, e ter como amigos autores que tem um trabalho que você acha bom demais!”.

Dos gringos, Moore e Gaiman pintam na lista, junto de Grant Morrison, Brad Meltzer, Jason Aaron, Alan Grant, Carl Barks, Akira Toriyama, Stan Sakai, Gail Simone e Brian K. Vaughan. “Costumo gostar de autores que vão um pouco além de grandes obras lançadas de vez em quando e fazem um bom trabalho no chão de fábrica que são as HQs mensais”, defende Alessio. E tanto ele quanto a Lari relembram Warren Ellis, apesar dos pesares. “Ele também me influenciou muito, mas tenho evitado exaltar seu nome após os casos de assédio que ele protagonizou”. Acho justo.

Sobre parceiros para projetos futuros, a Lari se diz privilegiada, pois tem muitos amigos maravilhosos que são artistas incríveis e com os quais gostaria de trabalhar. “Estamos buscando apenas um momento pros nossos cronogramas se encontrarem. Alex Rodrigues, Al Stefano, Samuel Bono e o time todo da HQ em Foco é um sonho pra mim pois estamos falando de alguns dos melhores artistas do Brasil e eu não estou exagerando”. Além disso, ela diz, será que seria demais sonhar com a Bilquis Evely desenhando um roteiro assinado por Larissa Palmieri? “Tenho muita admiração pelo Shiko, Brão, Pri Wii. Mas uma coisa eu posso te dizer: acho o trabalho do Mario Cau incrível e esse sonho eu vou realizar já já também, junto com a Fabi Marques que vai colorir e com a edição do Daniel Esteves”. Só que ela confessa: algumas das melhores surpresas que teve com trabalho de quadrinhos foram parcerias que não estava esperando. “Acho que essa é a maior graça de tudo o que fiz até agora”.

No Brasil, Alessio afirma que já fez HQs com artistas muito bons, mas tem três com os quais não trabalhou ainda e seria massa se rolasse algo: Mario Cau (olha ele aí de novo!), Laís Bicudo e Laudo Ferreira.

Vamos ficar de olho pra ver se estas parcerias se concretizam.

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Comments
  • Excelente entrevista! Tenho visto a polarização chegar no meio dos quadrinhos com essa discussão besta entre o que é melhor. Depende! Cada um vai ter seu gosto. Eu sempre preferi os roteiros, mas já comprei gibi só pela arte e não me envergonho disso. Neil Gaiman nunca desenhou uma HQ na vida e é um dos três maiores nomes entre os roteiristas vivos, logo atrás de Moore que chegou a desenhar algumas tiras e Frank Miller que desenha melhor do que escreve, mas compôs obras magníficas nas duas áreas. Entendo quem faça essa polarização do lado de fora da cena, mas se estiver envolvido no meio, acho que está no caminho errado. Abraço!

    15 de dezembro de 2020
  • Muito bom! Quando eu crescer vamos fazer alguma hq juntos. ( se eles quiserem rs)

    16 de dezembro de 2020

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