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Jozz: ampliando, repensando, reconstruindo

Trabalhando na segunda edição de sua HQ “A Cidade Submersa”, o autor fez nascer uma nova obra ao ressignificar o “ódio”

Por THIAGO CARDIM

O nome originalmente é Jorge Otávio Zugliani – mas o ilustrador, autor de quadrinhos, designer editorial, professor e pesquisador acadêmico nascido em Jaú rapidamente se tornou apenas “Jozz”.

Aluno do brilhante Luiz Gê no Mackenzie, seu trabalho de graduação tornou-se igualmente seu primeiro livro: “O Circo de Lucca”, editado pela Devir em 2007. Uma HQ metalinguística sobre o seu conflito, enquanto artista, com um palhaço que cruza o seu caminho – e, curiosamente, um gibi que recebi da editora e que ficou MUITO tempo na minha pilha de leitura, até que enfim eu chegasse a ele. E quando cheguei, UAU, a parada simplesmente explodiu a minha mente. Nascia ali, naquelas páginas, a discussão narrativa, sempre experimental, que marcaria a obra de Jozz.

Em pouco tempo, ele ganhou um Troféu HQMIX de Desenhista Revelação (2008). E viria então o livro A Cidade Submersa, surgido originalmente como uma reunião poética de HQ, livro ilustrado e sketchbook, misturando diversas técnicas de desenho e pintura, a respeito da cidade natal do autor e inspirado por uma pequena enchente.

Porém, em uma terrível ironia, o estoque da 1ª. edição se perdeu sob a força das águas de uma segunda enchente. Desta forma, Jozz se viu em meio a um novo desafio – revisitar a cidade submersa, não apenas como obra, mas também como uma daquelas peças desgraçadas que a vida nos prega.

“Cara, olhando pra trás, tudo o que já produzi antes de A Cidade Submersa, eu normalmente te diria que não é uma característica minha refazer coisas, muito menos me repetir em algum estilo”, diz ele, em entrevista exclusiva pro Gibizilla. “O que aconteceu nesse livro é que o processo de recuperar arquivos em drives, redesenhar coisas que se perderam e ampliar com as atualizações da tragédia e lidar com toda a história de novo foi fundamental para o processo de cura”.

O autor tentou esquecer e seguir em frente, mas a ferida era muito grande e ignorar parecia só piorar a depressão. “Então procurei ajuda e me pareceu mais sensato olhar de novo para a HQ, meditar, refletir e enfrentar a história que está ali documentada. E foi certeiro, eu resgatei a motivação que faz desenhar e escrever e tinha em mãos finalmente algo que eu posso me orgulhar de ter feito. Um lance aliás que eu não sentia há muito tempo”.

Ressignificando o ódio

Jozz conta que estava acumulando uma série de rancores desde que morava em São Paulo. “Ir para o interior era um sinônimo de derrota ou algo assim. E passar por tudo isso foi a pá de cal. Essa nova edição totalmente reconfigurada trata justamente de perceber que – apesar de parecer – não há inimigos a se enfrentar, é tudo ilusão. Quer dizer, as coisas acontecem, mas o sofrimento é ilusão. Há somente a nossa mente e como nós reagimos ao mundo a nossa volta. E é aí que podemos reagir com sabedoria ou não”.

Este compilado de textos e poemas organizados para dialogarem com uma série de desenhos de observação soltos, por sua vez, também foram retirados dos cadernos do quadrinista e produzidos em Jaú entre 2013 e 2020. “Porém, quando preparei o primeiro boneco da publicação, ainda no caos de 2020, eram 64 páginas de puro ódio. Também, pudera, o que motivou aquela compilação foi uma série de desventuras, incluindo uma enchente que acontece com frequência naquele lugar. Por isso, A Cidade Submersa”.

Após a obra original ser lançada e começar a esboçar um relativo sucesso, mais tragédias aconteceram e, dessa vez, ele perdeu tudo. Incluindo o estoque do livro, computadores, HD externo etc. Pra piorar, constatou que tinha apenas os desenhos escaneados dos cadernos na nuvem, sem tratamento. “Ou seja, não tinha mais os arquivos diagramados e prontos para simplesmente enviar a gráfica e imprimir mais uma tiragem”.

Ou seja… a tempestade perfeita. Ou quase isso.

“Eu estava tão bravo na primeira edição (em meio a pandemia, pouca grana, dormindo com o colchão no chão), pouco prazo e também com receio da perseguição política que estava rolando naquela cidade, que eu não pude nem destilar todo o veneno que eu queria, nem ter paz suficiente para escrever bem (aquela edição era financiada com os recursos da Lei Aldir Blanc, então os vereadores conservadores estavam fazendo de tudo pra achar problemas)”, revela o autor.

Assim, na nova edição, além dos acréscimos iniciais e finais, ele reescreveu toda a parte original. “Como eu precisava redesenhar algumas cenas, aproveitei para trocar páginas de lugar, reescrever e melhorar o fluxo narrativo”.

Na prática, Jozz refez a diagramação do zero, tratou todas as artes novamente e somou algumas novas. Aproveitou então para reescrever alguns trechos e ampliou a narrativa, tornando-se uma história sobre o apego às ilusões e a dificuldade em lidar com perdas.

“Uma leitora que pegou as duas edições me disse que encara a primeira versão apenas como um artbook e a segunda de fato com uma obra narrativa. Ficou mais claro a mistura de histórias em quadrinhos e livro ilustrado”.

Uma nota que virou 18 páginas

Então, isso aconteceu. Rolou um processo de financiamento coletivo para fazer esta nova edição acontecer. Ao final da campanha, o quadrinista tinha uma versão pronta de 80 páginas. Mas ao ler, a obra não alcançava tudo aquilo que ele queria expressar. “Remexi de novo e o que era uma simples nota no final do livro, transformou-se em mais 18 páginas de quadrinhos, chegando a 96”, diz.

Ele explica que tudo tem relação com o lance do processo de cura. “Voltar a mexer com tudo não me afundou, mas me fez bem criativamente. Era como se eu estivesse me estudando, lendo livros sobre mim e compreendido o que era teimosia, ignorância, apego e o que era de fato a impermanência da vida. Aquilo com o qual não se pode lutar”, confessa ele, abrindo o coração.

Quando chegou no final, Lozz estava confiante com o trabalho novamente. Com o que era capaz de fazer. Animado de acordar e desenhar e gostar do que desenhou ao longo do dia.

“Havia esboçado algumas vezes, em ângulos diferentes, a cena em que eu resgato meus cachorros na água. Aquilo estava legal demais, visualmente falando, para eu deixar apenas uma nota no final do livro. Era quase o dia de mandar o livro pra gráfica. Roteirizei o final, fiz umas miniaturas, curti. Testei técnicas, giz e lápis de novo, mas a aquarela me convenceu. Exatamente o que faltava. Fui pro computador e escrevi pros apoiadores do Catarse pedindo desculpas pelo atraso, mas eu tinha que fazer aquilo, pois teria tudo a ver com a ideia de reencantamento com a vida que eu queria passar. Desse modo, os dias seguintes foram de finalização de páginas A3 em aquarela, da maneira mais tradicional possível, esboços a lápis, mesa de luz, etc. Curtindo cada segundo”.

Já tenho A Cidade Submersa original. E agora?

Agora, com relação ao leitor, do ponto de vista de experiência, será que Jozz acredita que vale ler ambas as edições de A Cidade Submersa, que acabam sendo complementares, ou esta segunda é suplementar? Ou quem sabe elas sejam tão diferentes entre si que, no fim, cada uma é algo único?

“Ao invés de colocar 2ª Edição, quase deixei apenas 2”, diz ele, reforçando a diferença entre ambas. “Cheguei até a pensar em novos nomes. Mas, poxa, é uma obra que deve muito à primeira. A razão de sua existência é revisitar a primeira e falar sobre isso. Quase como se a metalinguagem saísse lá do meu primeiro livro O Circo de Lucca, desse a volta e viesse me acertar em cheio agora de novo”.

Ele diz, no entanto, que acredita que, pela pressa, a primeira edição é um pouco pretensiosa. “Na ânsia de amarrar logo as imagens e entregar no prazo do edital, eu intercalei meus poemas com textos de outros autores, como Darcy Ribeiro, haha. Eu reli esses dias e me deu um pouco de vergonha. Então virou um catálogo de desenhos e poemas mesmo”.

Já na segunda edição, ele teve calma, priorizou o fluxo narrativo, tirou o que chama de excessos e redundâncias. “Agora posso dizer com tranquilidade que tem uma história sendo contada ali. O melhor que eu pude desenhar e escrever até agora. Então, voltando à pergunta, acho que dá pra ir direto na nova edição. Gosto do que está ali. Acho que o que interessa está ali”.

Então tá. A edição anterior dá pra comprar na Amazon. Já a NOVA edição, você pode comprar direto na lojinha do site do Jozz.

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