
Lama: HQ como ferramenta política e de resistência
Gibi da dupla Ea Damaia e Cucas é inspirado em casos reais da luta por moradia na Grande São Paulo
Por THIAGO CARDIM
Por definição, eu meio que tendo a entender que se você é da turma do “não mistura política com o meu gibizinho”, bom, talvez nem fosse o caso de estar navegando por este site – talvez fosse inclusive o caso de dar uma lida marota no nosso “quem somos”.
“Quadrinhos é uma linguagem muito flexível, é possível criar muita coisa, questionar, criticar e denunciar diversas situações”, defende a dupla criativa Ea Damaia e Cucas, em entrevista exclusiva ao Gibizilla, meio que corroborando o que talvez devesse estar claro desde que você pegou um gibi nas mãos pela primeira vez na vida.
Ambos criaram “Lama”, obra que retrata os desafios de uma família que enfrenta uma reintegração de posse, a partir da reviravolta que acontece na vida de Araci, uma mãe solo, e seus filhos, Rui e Juca, que vivem na Vila Operária, em Guarulhos. Contemplada pelo Programa de Ação Cultural (ProAc), da Secretaria da Cultura, Economia e Indústria Criativa, Governo do Estado de São Paulo, a HQ é obviamente inspirada em muitas histórias reais, apontando a importância da terra e dos territórios – simbólicos, comunitários, materiais – na constituição e manutenção dos laços, das relações e da memória coletiva.
“Lama segue esse caminho, colaborando e contribuindo para discussões relacionadas a questões de moradia e vida na periferia. A luta por moradia é um tema urgente e deve ser discutido em suas diversas camadas e desdobramentos”, dizem, com conjunto, roteirista e desenhista. “O debate sobre o direito à moradia permanece fundamental, e nosso objetivo com Lama é justamente ampliar essa discussão”.

Ficção com sabor amargo de realidade
Araci é uma mulher humilde, que comprou o terreno e construiu a casa com muito esforço, numa busca por emancipação de uma complicada relação com sua mãe, para a qual, de repente, precisa se voltar em busca de apoio. Por outro lado, a Vó Zélia aproveita a oportunidade para se aproximar mais dos meninos, que sentem a perda da casa e a reverberação em suas vidas dos conflitos ditos e não ditos entre a mãe e a avó. É por meio do apoio, do afeto e da organização social que Araci e sua família aprendem a lidar com a nova realidade.
Esta família é ficcional, mas a Vila Operária é de verdade, uma ocupação urbana, por vezes considerada desordenada, mas que foi a única alternativa para diversas famílias, que têm CEP e endereço fixo lá em Guarulhos. Pensando originalmente como um zine, sem muita pretensão, “Lama” ganhou corpo quando os criativos se depararam com os requisitos do edital do ProAC – que demandava uma reflexão sobre a economia criativa envolvida no projeto –, e começaram a considerar o impacto cultural da obra, levando a um aprofundamento das pesquisas para embasar melhor a narrativa. Aí, algumas coisas atravessaram o caminho dos dois.
“Um dia, assisti a um vídeo de um morador relatando que sofreu um despejo em Guarulhos, no bairro do Continental, um bairro vizinho de onde morei. Isso despertou meu interesse em me aprofundar na temática”, relata Ea Damaia. Depois, plenamente envolvidos, deram de cara com o mestrado de Maíra Moraes de Carvalho, “Movimentos sociais, território e resistência: a luta dos trabalhadores e do movimento de luta por moradia pela Vila Operária em Guarulhos, SP” (2018), que se tornou a principal base teórica para a construção da história.
Além disso, eles buscaram referências em produções brasileiras, como o excelente filme “Marte Um” e a série “Amar é para os Fortes”, escrita por Marcelo D2. No mundo dos quadrinhos, mergulharam na obra de Jefferson Costa. “Convidamos ele para fazer nossa consultoria de storyboard para o Lama, assim como a Diana Salu para a consultoria de roteiro”, revelam.

Uma história feita de muitas histórias
Além disso, o projeto é fruto da criação e idealização de autores que pertencem a grupos historicamente minorizados: um autor preto e uma pessoa trans. “Como pessoas de vivências específicas, cada um de nós tem experiências muito particulares para compartilhar. Cada um contribuiu com suas visões para a construção da história”, contam. Além da história ser sobre pessoas pretas e se passar em Guarulhos, elementos mais específicos como a horta comunitária e o contato com a cerâmica e o desenho são coisas presentes nas vidas dos autores.
“É muito importante que minorias, como pessoas pretas e pessoas trans, estejam produzindo projetos e narrativas, contando suas próprias histórias, ocupando de fato espaços e criando suas narrativas”, afirmam.
Ea Damaia é artista visual, quadrinista e designer – desde 2018, vem se dedicando a publicações independentes e artes gráficas, sendo autore de Mal Me Quer (2022) e CyberLovers (2023), tratando de temas como identidade de gênero, criação de mundos e narrativas a partir de um olhar trans. Já Cucas, codinome de Lucas Castro, é quadrinista, ilustrador e professor de desenho da cidade de Osasco, é ilustrador de Otávio (Ases da Literatura, 2022) e autor de Labareda (Independente, 2022), trabalhando temas principalmente relacionados às questões raciais e a vivências periféricas.
Importante lembrar…
A HQ “Lama” teve pré-venda na plataforma Catarse e atualmente pode ser adquirida pelo site www.cucaslastro.com.br.
“Nosso lançamento foi recente em São Paulo. Agora estamos nos organizando para realizar um novo lançamento em Guarulhos, afinal nossa história se passa aqui”, prometem. “Queremos levar o quadrinho para novos públicos, principalmente moradores de Guarulhos, especialmente os da Vila Operária. Como autores, ficamos muito felizes e gratificados ao receber devolutivas positivas dos leitores de Lama. Nosso público tem se mostrado acolhedor e engajado com a história, o que reforça a importância de continuar promovendo essa narrativa”.
Por fim, eles dizem que levar essa temática para diferentes espaços e públicos pode não só enriquecer o diálogo social, “mas também sensibilizar mais pessoas sobre os profundos impactos da luta por uma moradia digna”.
E a gente aqui do Gibizilla apoia integralmente esta luta, aliás. E caso queira saber mais, por favor, dá uma navegada neste link bem aqui.