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Shmoo: a fofa e subversiva criatura de Al Capp

Editora Veneta vai publicar no Brasil, pela primeira vez, todas as tiras do personagem que saíram como parte de Li’l Abner entre os anos de 1948 e 1976

Por THIAGO CARDIM

Se você tem a mesma faixa etária que este que vos escreve, algo entre 30 e 40 anos de idade, muito possivelmente a sua referência, quando eu digo o nome “Shmoo”, é um desenho animado da Hanna-Barbera, criado em 1979, chamado The New Shmoo (exibido por aqui como Shmoo, a Foca Fofa).Na animação, o personagem que parece uma foca meio gasparzinho vira um tipo de mascote “fantasmagórico” que ajuda adolescentes a resolver mistérios, em uma pegada tipo Scooby-Doo.

Mas acontece que o Shmoo é um personagem muito mais antigo do que isso. Bem mais, aliás. Tamos falando de uma das criaturas mais inusitadas, engraçadas e politicamente afiadas das tiras clássicas americanas. E a editora Veneta já garantiu o financiamento coletivo para o lançamento, no país, de uma edição caprichada reunindo as histórias originais do personagem criado por Al Capp, publicadas entre 1948 e 1976.

Mas me conta… o que diabos é um Shmoo?

O Shmoo é uma criatura em forma de gota, toda branca, sem braços e com olhos doces. Parece, de fato, uma foca – e surgiu nas tiras de Li’l Abner (conhecido por aqui como “Ferdinando”) em 31 de agosto de 1948. Extremamente gentil, ele se multiplica, produz leite, ovos e até cheesecake, talvez inclusive um belo assado. Morre de felicidade se alguém o deseja para consumo. Sim: é um ser que oferece tudo o que o ser humano precisa — gratuitamente.

O conceito virou um fenômeno nos EUA, gerando brinquedos, colecionáveis, aparições em programas de TV e até livro infantil best-seller.

Os quadrinhos originais contém uma crítica bastante direta ao capitalismo. Afinal, a simples existência do Shmoo ameaça o chamado deus mercado: se ninguém precisa comprar comida, roupa ou abrigo, o que acontece com as empresas? Pois é. O Shmoo foi proibido, caçado e exterminado dentro da própria história. Empresários, banqueiros e industriais decretam o “shmooicídio”.

O personagem acabou interpretado de formas contraditórias: à esquerda, como símbolo de abundância natural e cooperação; à direita, como alegoria do perigo do “estado de bem-estar”. O que ninguém negou foi o poder subversivo de um ser que oferece tudo… e não quer nada em troca.

As histórias se passam na pequena e pacata vila de Brejo Seco (Dogpatch, no original), em cujas imediações as criaturas se instalam e criam seu Vale dos Shmoos, subvertendo a rotina de seus moradores e atraindo a atenção de empresários e poderosos de todo país. Surgem muitas variações do personagem, como Super-Shmoo, Frankenshmoo e Fu Manshmoo — todos pastichando gêneros e tendências da cultura pop da época. É uma festa de nonsense com crítica social embutida.

Além das criaturinhas, as histórias giram em torno da família Barnabé (Yukum, no original) – cujo protagonista é o forte e simplório Ferdinando, filho dos ingênuos caipiras Lúcifer Ornamental Barnabé e Xulipa Barnabé. Outro rosto recorrente é o da bela Violeta (Daisy Mae), eterna apaixonada por Ferdinando e que passou as primeiras décadas da série fazendo de tudo para tentar se casar com ele.

Alguns dos antagonistas refletem bem o aspecto crítico da obra de Al Capp: além do clã degenerado dos Ouriço, um bando de foras-da-lei maltrapilhos, os Barnabé precisam encarar a ambição dos inescrupulosos produtores de carne Cabeleira e Magriça; J. Costagorda Fiambre, o ganancioso rei da charcutaria; e Muié Loba, uma devoradora de homens literalmente criada por lobos.

Quem foi Al Capp

Nascido Alfred Gerald Caplin, em 1909, Al Capp foi um dos mais populares cartunistas dos Estados Unidos entre as décadas de 1930 e 1970. Amputado da perna esquerda na infância, Capp fez da ironia uma arma poderosa, transformando as tiras de jornal em plataformas para o comentário social afiado.

Criou personagens com linguajar próprio, situações absurdas com fundo político e monstros simbólicos como o Shmoo. Ele ajudou a consolidar o formato da tira diária como uma forma de arte completa e influenciou gerações de cartunistas. Foi premiado pela National Cartoonists Society, entrou para o Hall da Fama dos Quadrinhos e é referência até hoje.

Autores como Robert Crumb, Garry Trudeau (Doonesbury), Albert Uderzo, René Goscinny, Charles Schulz, Harvey Kurtzman, Gilbert Shelton, Jules Feiffer e até mesmo criadores de séries animadas como Matt Groening (Os Simpsons) reconheceram a influência de Al Capp em seu trabalho. A combinação de sátira mordaz e visual caricato, além do uso político do humor gráfico, se tornou marca registrada de uma linhagem que chega até às webcomics contemporâneas.

Mas Al Capp também era uma personalidade da mídia. Suas participações frequentes em atrações televisivas como Tonight Show e Ed Sullivan Show, entre outros, tornaram seu rosto e sua personalidade conhecidos no país inteiro. Ele chegou a ter seu próprio programa de televisão, Al Capp Show, um programa de rádio e uma coluna de jornal.

Entre seus fãs famosos, estão personalidades tão diversas como Charles Chaplin, Orson Welles, Harpo Marx, Marshall McLuhan, a rainha Elizabeth II e Frank Sinatra.

Porém…

…é, sempre tem um porém.

Em uma entrevista publicada no blog da Veneta, o pesquisador Denis Kitchen (responsável, inclusive, pela organização do livro a ser lançado por aqui, além de ser um dos maiores especialistas na obra de Capp e importante pesquisador e editor de HQs) conta que o legado de Al Capp desapareceu, pelo menos nos EUA, porque sua carreira terminou em escândalo: ele foi revelado como um predador sexual, e isso arruinou sua carreira. “Fora dos Estados Unidos, acho que a publicação de Li’l Abner foi prejudicada pela dificuldade que é traduzir o dialeto hillbilly [caipira] dos personagens”.

Ele diz, no entanto, que acredita que a contribuição de Al Capp para a sátira política e social nos quadrinhos é subestimada. “Ele estava tão à frente da sua época que quase não há comparação. Ele tinha um excelente olho e ouvido para a hipocrisia na política e para expor as falhas da natureza humanas, e satirizava essas coisas de maneiras continuamente inventivas”, diz. “E, ao mesmo tempo, criou novas instituições americanas, como o Dia da Maria Cebola, explosões comerciais como o Shmoo, spin-offs como Fearless Fosdick e adicionou novas palavras à língua inglesa. Ele foi um rolo compressor criativo e empresarial sem precedentes em sua época. Suas criações seriam muito mais apreciadas hoje se seu legado não fosse manchado pelos escândalos”.

Outra questão que acabou “marcando” a trajetória de Capp foi quando o artista, originalmente alguém politicamente muito liberal, se tornou um direitista tão ferrenho ao final da vida, lá pelo encerramento da década de 1960, quando se indignou com o movimento antiguerra e com os estudantes em geral. “Alguns observadores achavam que Capp se voltou para a direita para obter publicidade — sua especialidade — e, como há tão poucos humoristas na direita, ele quase teria o monopólio dos leitores conservadores. Mas eu acho que ele foi sincero em sua mudança de opinião política”.

Ele explica que Capp, morando em Boston, viu manifestantes estudantis antiguerra atirando pedras e balançando com violência o carro do presidente de Harvard, seu amigo – e ficou genuinamente chocado. “Para ele, aqueles estudantes tinham muita sorte de ter suas mensalidades caras pagas por pais abastados e deveriam ter sido gratos por estarem em Harvard. Deveriam estar em seus dormitórios estudando, não nas ruas com cartazes. Capp via os estudantes que protestavam como uns ingratos que precisavam de banho e um corte de cabelo. Perdi o interesse em suas tiras e o respeito por ele naquele momento, em especial quando ele se tornou amigo íntimo de Richard Nixon, que foi o pior presidente imaginável antes que alguém pudesse imaginar Donald Trump”.

O Shmoo no Brasil: publicação inédita

Embora o personagem tenha feito parte de Li’l Abner — que saiu no Brasil como Ferdinando —, o Shmoo nunca teve um volume dedicado por aqui. Isso muda com o lançamento da editora Veneta. A edição brasileira de Shmoo conta com 196 páginas em formato grande (20,5 x 27,5 cm), encadernação em brochura e o miolo alternando entre páginas coloridas e preto e branco.

A tradução de Alexandre Barbosa de Souza (tradutor de autores como Herman Melville, Rudyard Kipling, Jane Austen, Patti Smith e Alice Munro), com edição de Jotapê Martins, adaptou a linguagem típica do interior dos Estados Unidos das tiras originais de Capp para o português falado no Brasil, com gírias e expressões locais. E preservou os nomes usados tradicionalmente nas traduções da HQ publicadas no Brasil, onde o Ferdinando estreou em 1937 no Globo Juvenil.

Mais do que uma relíquia engraçada, Shmoo é uma pequena bomba filosófica embrulhada em humor gráfico. Em tempos de crise climática, concentração de renda e exploração predatória, revisitar um personagem que representa a fartura espontânea — e o medo que ela provoca — é mais do que relevante. É necessário.

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