
O Eternauta: passou da hora de você conhecer essa obra
Vamos falar um tantinho da jornada do maior herói dos quadrinhos latino-americanos, dos gibis até a tela do Netflix
Por THIAGO CARDIM
Aqui no Brasil, quando falamos de cultura pop, a gente tem dois típicos complexos de vira-lata – o primeiro deles, mais óbvio, é comparar a nossa produção local com a que vem de fora (em especial dos EUA, nossa bússola qualitativa desde sempre) e entender o que fazemos sempre como pior, mais tosco, mais mal-acabado. Já o outro complexo que carregamos é a falta de compreensão (e, muitas vezes, de interesse) sobre o que é produzido ao nosso redor, pelos nossos hermanos da América do Sul.
Apesar de falado em espanhol, diferente do nosso bom e velho português, o cardápio de filmes, séries, discos, livros e derivados em países como Colômbia, Bolívia, Chile e Peru conversa muito mais com a nossa realidade, com uma entrega de muitíssima qualidade, do que um bando de enlatados genéricos vindos da terrinha problemática do Tio Sam. O mesmíssimo vale pro mundo dos gibis. Tendemos a buscar até a raspa do tacho ianque enquanto desconhecemos verdadeiros clássicos que nasceram aqui, a poucos quilômetros de nós.
Um destes clássicos, finalmente voltando a ganhar o reconhecimento que deveria por aqui, é justamente O Eternauta, uma das obras mais icônicas da história dos quadrinhos sul-americanos. Criado nos anos 1950 por Héctor Germán Oesterheld e Francisco Solano López, o personagem atravessou décadas, versões, regimes políticos e agora ganhou o mundo com a adaptação da Netflix, cuja segunda temporada já está confirmada. Mas o que torna essa história tão especial?
Eu te conto, intrépido leitor. 😉

A história original da HQ O Eternauta (1957)
Publicado inicialmente entre 1957 e 1959 na revista Hora Cero Semanal (publicação da editora Frontera, fundada pelo próprio Oesterheld), El Eternauta é uma ficção científica inspirada por A Guerra dos Mundos, de H.G. Wells e ambientada em Buenos Aires, onde uma misteriosa nevasca radioativa cobre a cidade e marca o início de uma invasão alienígena. O protagonista, Juan Salvo, é um homem comum que, junto de sua família e amigos, tenta sobreviver ao colapso da civilização.
A HQ se desenrola com Salvo tornando-se um “eternauta” — um viajante do tempo e do espaço. A narrativa mistura ficção científica e crítica social de forma pioneira para os padrões da época.
Mais do que um quadrinho de ficção, O Eternauta se tornou símbolo de resistência. A invasão alienígena e o controle mental exercido pelos invasores (os “Ellos”) foram lidos como metáforas do imperialismo e das ditaduras militares, especialmente durante os anos de chumbo na Argentina.
O autor Héctor Oesterheld transformou a obra em uma denúncia sutil, mas poderosa, contra a opressão. Com o tempo, O Eternauta deixou de ser apenas HQ — virou um símbolo político.
Héctor Germán Oesterheld e Francisco Solano López: os criadores
Oesterheld era geólogo de formação, mas apaixonado por literatura. Tornou-se um dos roteiristas mais influentes da Argentina, escrevendo ficções com profundidade filosófica e crítica social. Já Francisco Solano López, com seu traço realista e detalhado, ajudou a criar uma atmosfera claustrofóbica e intensa para a história. A parceria entre os dois moldou a identidade visual e narrativa do Eternauta.
Mas, durante a ditadura argentina (1976–1983), Oesterheld e suas quatro filhas, todos atuando como militantes Montoneros (no caso, uma organização político-militar argentina de esquerda que atuava como guerrilha urbana), foram sequestrados e desaparecidos (!) pelo regime militar. Nenhum dos corpos foi recuperado. A brutalidade desse desaparecimento transformou Oesterheld em mártir — e O Eternauta em seu mais duradouro legado.
Desde então, sua obra é reverenciada como resistência artística e humana.

A versão de 1969
Em 1969, dez anos depois do fim da obra original, Oesterheld resolveu retornar à sua obra-prima e reescreveu O Eternauta numa versão ainda mais sombria, com arte do lendário quadrinista uruguaio Alberto Breccia. Essa nova leitura abandonava a linearidade da original e adotava uma estética expressionista, experimental, ousada.
A crítica ao autoritarismo era mais explícita, transformando a distopia em uma obra ainda mais tensa, com o traço de Breccia distorcendo a realidade com uma genialidade incômoda, de ares menos ficção cientifica e mais filme de terror. Obviamente, em meio a um regime ditatorial, o resultado final muito mais contundente levou à censura e à retirada da obra das bancas.
Aliás, parênteses, se você não sabe quem diabos é o Breccia, vale o reforço aqui: considerado um dos maiores artistas dos quadrinhos de todos os tempos, Alberto Breccia elevou a linguagem visual da nona arte. Dono de um estilo único, misturava técnicas como colagem, xilogravura e pincel seco. Trabalhou com Oesterheld também em obras como Mort Cinder e Perramus, além de uma biografia de Che que inclusive TAMBÉM foi censurada pela ditadura. Breccia influenciou gerações de artistas latino-americanos e europeus, ajudando a firmar os quadrinhos como arte engajada.
E teve continuação? Teve sim. Ou quase isso.
Depois de uma série de negociações, os direitos de publicação de O Eternauta acabaram sendo adquiridos pela Ediciones Record. A editora obviamente se apressou para republicar a primeira história, que foi novamente um tremendo sucesso, e eis que então foi a vez de uma sequência, publicada inicialmente na antologia em quadrinhos Libro de Oro Skorpio #2 e com a mesma equipe criativa da versão original.
Pois sim: Solano López, que seguiu em uma carreira pela Europa, retornou e começou a trabalhar com Oesterheld, que já vinha atuando como militante e, portanto, se ocultando em esconderijos de maneira clandestina. Existia, inclusive, uma espécie de “descompasso” criativo entre a dupla, porque o desenhista não concordava com o caminho mais “subversivo” que a trama seguia, representando o pensamento dos Montoneros. Mesmo assim, o capítulo final chegou a ser publicado, em 1978, antes do desaparecimento “oficial” do escritor.
O Eternauta ainda teria outras continuações, nenhuma delas com o mesmo tipo de visibilidade: “El Eternauta: tercera parte” (1981, de Alberto Ongaro e Mario Morhain/Oswal), “El Eternauta, el mundo arrepentido” (1987, de Pablo Maiztegui e Francisco Solano López), “El Eternauta: Odio cósmico” (1999, de Pablo Muñoz/Ricardo Barreiro e Walther Taborda/Gabriel Rearte) e “El Eternauta, el regreso” (2003, de Pablo Maiztegui e Francisco Solano López).
A importância do Eternauta para toda a América Latina
Mais do que um personagem, O Eternauta virou um ícone cultural. Ele representa o herói coletivo, o homem comum enfrentando o horror. Seu impacto se estende por gerações, sendo estudado em escolas, homenageado em murais e usado como símbolo de resistência política em diversos contextos latino-americanos.
Em 2024 e 2025, a imagem do Eternauta voltou às ruas. Cartazes com Juan Salvo encapuzado, sob a nevasca, estamparam manifestações contra os cortes na cultura e educação promovidos pelo presidente Javier Milei, além de algumas figuras saírem às ruas devidamente fantasiadas como o personagem mascarado. A força do personagem como símbolo da luta coletiva contra o autoritarismo permaneceu viva — e relevante.

Mas… e no Brasil?
Por aqui, O Eternauta sempre teve um status cult. Já apareceu em publicações como a revista Metal Pesado, mas foi só mais recentemente que começou a ter edições mais caprichadas, do jeito que de fato merece.
Em 2019, a editora Comix Zone colocou no mercado justamente O Eternauta 1969 como o seu segundo lançamento, vencendo inclusive o Troféu HQMIX de Edição Especial Estrangeira. Agora, está aberta a pré-venda da reimpressão do quadrinho, em uma edição especial e com novo projeto gráfico.
Já sobre a versão “original” da obra, em 2024 foi a vez da editora Pipoca & Nanquim trazer esta edição para o público brasileiro — no caso, numa luxuosa edição definitiva remasterizada com capa dura e formato widescreen, respeitando a orientação da obra original.
A série da Netflix: quem está por trás e quem está no elenco?
Lançada no início de 2025, a adaptação de O Eternauta para a Netflix foi uma coprodução entre a K&S Films (a mesma de Dois Papas, do brasileiro Fernando Meirelles) e a plataforma de streaming. A série com quase 3.000 atores, entre elenco e figurantes, é dirigida por Bruno Stagnaro, conhecido por seu trabalho em Okupas e Un gallo para Esculapio. O roteiro dos seis episódios desta primeira temporada respeita a estrutura da HQ original, mas também atualiza elementos para o público contemporâneo.
Foram 2 anos de desenvolvimento e redação de roteiros, mais de 4 meses de pré-produção, meio ano de filmagens em Buenos Aires — em 50 locações diferentes — e mais de 1 ano e meio de pós-produção.
Mas, mesmo com todos estes números e informações de produção, muitos fãs (em especial os argentinos) questionaram demais a adaptação, até então tida como “infilmável” ou “inadaptável”. Sabe aquela história toda que rolou ANTES da versão de Zack Snyder pra Watchmen? Bem isso.
Em entrevista para a revista Rolling Stone, Ricardo Darín afirmou que, quando o projeto começou, os fãs mais fanáticos do Eternauta estavam completamente travados, tensos, pensando: “Isso vai ser uma porcaria”. O ator diz: “Tô louco pra ver a cara de cada um desses, logo de cara. ‘Não mexe nisso, não encosta porque vai virar uma americanização barata’. Tenho certeza de que pensaram isso — na verdade, escreveram isso nas redes”.
Ah, sim, importante reforçar que, vejam vocês, o papel de Juan Salvo ficou com ninguém menos que Darín, um dos atores mais respeitados do cinema argentino (há quem brinque, inclusive, que é proibido existir um filme argentino sem o nome de Darín no elenco). Com trabalhos em O Segredo dos Seus Olhos, Carancho e Relatos Selvagens, Darín foi amplamente elogiado pela crítica internacional.
Sua presença obviamente alavancou o projeto e ajudou a consolidar o sucesso da série, agora com segunda temporada confirmada.

Conclusão: O Eternauta vive — e resiste
Mais do que uma HQ ou uma série, O Eternauta é um grito contra o silêncio, uma metáfora da sobrevivência e da luta. Sua trajetória, da Buenos Aires dos anos 1950 à Netflix global de 2025, comprova o poder de uma boa história — e de um herói que é, essencialmente, um de nós.
O próprio Oesterheld já dizia: “O verdadeiro herói de O Eternauta é o herói coletivo, um grupo humano”. Darín faz eco e amplifica o tema: “O que O Eternauta fala é de algo que, pra todos nós que temos um mínimo de sensibilidade, sempre martelou na cabeça: o oposto da ideia de ‘quem cuida do seu próprio quintal, se salva’. Essa história mostra que não há como se salvar sozinho, que é lado a lado, se importando e se preocupando com o que acontece com quem está ao seu lado”.
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O ETERNAUTA original – Edição Definitiva (Pipoca & Nanquim)
O ETERNAUTA 1969 – Nova Edição (Comix Zone)