Jornalismo de cultura pop com um jeitinho brasileiro.

O cinema “adulto” do visionário Zack Snyder

Mais do que o trailer do seu tão aguardado #Snydercut, liberado durante o DC Fandome no finalzinho de agosto, o que levantou uma série de discussões foi um tweet repleto de arrogância que o cineasta usou para responder a um jornalista

Por THIAGO CARDIM

Bom, então que não dá mais pra voltar atrás, a Warner cedeu aos apelos de uma minoria internética barulhenta e o tal corte do diretor do filme da Liga da Justiça enfim vai sair mesmo, é uma realidade, prevista para 2021. Será no serviço de streaming do estúdio, o HBO Max, no formato de uma minissérie em quatro episódios com 1h de duração cada um. Ou seja, uma versão de QUATRO FUCKING HORAS. Não quero, pelo menos não AGORA, discutir sobre o motivo deste diabo de produção existir e o que coisas como ele e o novo Star Wars representam de nocivo para a cultura pop.

Falamos sobre isso uma outra hora.

O que eu queria MESMO, no entanto, era discutir o quanto o tal filme da Liga da Justiça é MUITO ADULTO. É, daquele mesmo jeitinho que diria a Peppa Pig.

Deixa antes eu explicar o que rolou: no dia 22 de agosto, a DC realizou um evento online global chamado Fandome, com o objetivo de anunciar novidades de suas produções para cinema e televisão para a galera. Um dos painéis, absolutamente narcisista e autocongratulatório, foi justamente para apresentar o tal trailer da Liga da Justiça Snyder Cut, a produção como “deveria ter sido” caso Snyder não tivesse se afastado (por um motivo MUITO justo, é bom que se diga, já que aconteceu uma tragédia na família do cara) e Joss Whedon, dos primeiros dois filmes dos Vingadores, assumido a bucha pra finalizar. Bom, tá aí o trailer. Se quiser assistir ANTES da gente continuar o papo, fica à vontade.

Bom, além de eu não ter achado rigorosamente nada demais nesta prévia, que tem o mesmo tom do filme original (portanto…) e a mesma falta de cor das produções anteriores do Snyder para este universo DC nos cinemas (PORTANTO…), além de reinterpretações de cenas deletadas que já eram de conhecimento público, este trailer tinha vazado horas antes do evento começar — e, olha só, seria importante a Warner tentar entender como diabos isso meio que está se tornando padrão pra eles (no mesmo Fandome, por exemplo, aconteceu mais uma vez com The Batman).

Mas enfim, o fato é que Scott Mendelson, jornalista de cinema da Forbes, foi um dos MUITOS que assistiu ao vídeo antes do lançamento no evento e resolveu ir ao Twitter comentar. E, curiosamente, ele teve a MESMA opinião que eu.

Mas adivinha quem não gostou? E resolveu usar o mesmo Twitter pra responder? Ah, vá, esta é fácil.

Ou seja… Zack Snyder não apenas foi dar uma bronca em alguém que viu a versão pirata de um trailer — e talvez ele tivesse que puxar a orelha de mais da metade da internet por causa disso, né — mas também ficou mordido com o crítico que disse, em sua resenha anterior para Liga da Justiça, que gostou tanto do filme quanto dos desenhos que via antigamente no bloco infantil matinal. E aí quis reforçar que sua versão da Liga é para ADULTOS. E acho que é AÍ que está o grande problema que eu gostaria de discutir neste texto.

O que significa, EXATAMENTE, dizer que um filme é para ADULTOS? Estamos falando de um filme com violência gratuita, muito sangue, cenas de sexo, produção 18+? Acho que não. Até porque é meio claro que a Warner enxerga em uma produção com super-heróis como a Liga da Justiça, seja para os cinemas ou para o HBO Max, algo com potencial para toda a família. Não vamos nos esquecer que, sim, super-heróis foram criados, antes de qualquer coisa, para falar com o público INFANTIL nos gibis. São, em sua essência, antes de Frank Miller e Alan Moore com seus Cavaleiros das Trevas e Watchmen trazerem uma camada extra de complexidade pra conversa, seres de roupas multicoloridas que pintam para salvar os inocentes e lutar contra as forças do mal. Simples como o simples.

Mas espera um pouco, então deixa eu ver se entendi agora. Talvez, quando diz que seu filme é para adultos, Snyder não esteja querendo dizer que sua obra é sobre gente pagando boletos e tentando fazer a declaração de Imposto de Renda, então, mas que sua visão para a Liga é mais COMPLEXA, mais cheia de camadas, mais sombria, abordando temas mais espinhosos… Mais SÉRIA, em resumo. Sem as piadinhas que são atribuídas costumeiramente aos filmes da Marvel, aqueles que os defensores vorazes do olhar do cineasta para a DC colocam do OUTRO LADO do espectro, como algo a ser combatido. Tá bom, tá bom. Pode ser. Talvez eu tenha entendido agora. E continuo achando uma pataquada sem tamanho. Este é um Snyder querendo a todo custo defender uma continuidade meio torta da trilogia de Christopher Nolan. Uma espécie de batmanzização do restante do Universo DC.

Antes de qualquer coisa, transformar o ser SÉRIO, ser SOMBRIO, ser ADULTO numa espécie de manifesto, numa justificativa para se posicionar acima de qualquer escolha narrativa ou estética, é de fato uma BOSTA. Um cara batendo no peito e dizendo que seus filmes são adultos não poderia ser a coisa MENOS adulta do mundo. Vejamos, por exemplo, o novo filme do Homem-Morcego de Matt Reeves. No mesmo DC Fandome, o diretor falou sobre sua visão, suas referências, HQs e filmes que o inspiraram, com um tesão que dava gosto de ouvir… Veja se em algum momento ele se meteu a dizer “ah, porque meu Batman vai ser muito mais adulto que os do Tim Burton e do Joel Schumacher”. NÃO. Honestamente, aliás, as filmografias de Reeves e de Snyder falam por si mesmas quanto a decisões criativas — enquanto um está EFETIVAMENTE preocupado em explorar diferentes narrativas em busca de uma boa história, o outro tem mais interesse em usar cores saturadas e câmera lenta pra ver se torna uma cena de pancadaria em algo mais cult, mais “artístico”. Você bem sabe qual é qual.

Um sujeito no Twitter, aliás, se incomodou quando eu questionei o chilique de Snyder e disse que Reeves também está fazendo um Batman adulto. Portanto, se eu gostei do trailer de The Batman, estaria sendo hipócrita. Opa, meu amigo, então, NÃO. Porque Reeves está contando uma história do Morcegão em sua ambientação mais famosa, uma Gotham City corrupta e decadente que é mais protagonista do que o próprio Cavaleiro das Trevas. Mas Snyder, ao querer defender uma Liga da Justiça SOMBRIA, parece de fato não entender DE NOVO os personagens com os quais está trabalhando, como foi no caso de Homem de Aço e Batman vs Superman (sinal da cruz). O Clark Kent que deveria ser um sinal de luz e esperança vive de dentes trincados tanto quanto Bruce Wayne.

E tá aí o grande ponto que sempre me incomodou na visão que Snyder e seu séquito sagrado têm — todo mundo tem que ser a porra do Batman. Não importa se ele é o Cyborg, a Mulher-Maravilha ou o Aquaman. A Liga, liderada por uma figura quase messiânica como o Superman, é um grupo que representa a última esperança da humanidade, um último facho de luz e otimismo diante de gigantescas ameaças cósmicas.

“Quando o Zack Snyder REFORÇA a ideia de que o seu filme é pra ‘adultos’, ele tá, na real, querendo dizer que é filme ‘de macho’. A ausência de cores, o tom ‘sério’… Não é isso que faz uma história ser adulta ou infantil ou qualquer coisa no meio”, relembrou o parça Thiago Borbolla, o Borbs, em uma thread certeira no Twitter. Ele relembra filmes como Toy Story 3 e Divertida Mente, da Pixar, produções EM TESE para o público infantil mas que tratam de assuntos seríssimos, sem deixar de usar cores, luz e humor para abordar temas como depressão e aceitar a vida adulta. “Saber rir de si, não se levar a sério, é adulto pra caralho”, diz ele. “Reclamar de cores, de piadinhas, e vibrar com ‘seriedade’, raiva, violência, não é coisa de adulto, é coisa de babaca”. Concordo 200% com tudo.

“Eu acho que o impacto dos super-heróis na cultura popular é ao mesmo tempo vergonhoso e tremendamente preocupante”, disse ninguém menos do que Alan Moore, aquele que Snyder tentou adaptar, num papo com a Folha de S.Paulo e reproduzido numa matéria da BBC ano passado. Segundo ele, estamos falando de personagens que nunca crescem, evoluem, amadurecem com o passar dos anos, mantidos por uma comunidade de fãs que não só aceita como incentiva este comportamento de ler para sempre a mesma história do Homem-Aranha de 17 anos. Imagina só, então, se os criadores responsáveis por estas histórias, seja nos gibis, na TV ou nos cinemas, resolvem não apenas evitar seguir em frente como manter o status quo tirando o que de mais crucial eles têm, seus ideais, por mais infantis que sejam, para criar uma legião de clones do Justiceiro. Seja bem-vindo aos anos 1990.

Numa apresentação especial de Watchmen na Art Center College of Design, em Pasadena, na Califórnia, local onde estudou quando era mais jovem, ainda em 2019, Snyder estava conversando com os alunos e mandou esta, sobre BvS. “Alguém diz pra mim: o Batman matou um cara. E eu fico tipo: porra, verdade? Vocês precisam acordar”. Aí ele completa: “quando você perde a virgindade para com este filme e vem pra mim dizendo coisas como ‘meu super-herói não faria algo assim’, eu digo ‘tá falando sério?’. Eu já passei desta fase. É legal ter uma visão do tipo ‘meus heróis são inocentes, eles não mentem pra América, eles não representam o dinheiro de suas corporações, meus heróis não cometem atrocidades’. Isso é legal. Mas você tá vivendo na porra de um mundo de sonhos”.

Outro grande chapa, o Renan, escreveu NESTE TEXTO que a missão do Batman não é apenas sobre vingança. “Não é só por causa dos tiros e das mortes no Beco do Crime. É mais do que isso. É sobre todos aqueles que, como Bruce, desistem da vida. A cada noite, Bruce Wayne também desiste da própria vida. Ele morre. E dá lugar ao Batman, um ser que não teme a morte e vinga todos aqueles que estão de joelhos. Por isso que o Batman não mata. A vida é de cada um de nós para escolher o que fazer dela”.

E neste caso, estamos falando APENAS sobre o Batman, hein.

Aí, vou repetir abaixo o que EU mesmo escrevi abaixo.

É claro que a cultura pop naturalmente reflete o que está ao nosso redor. Ninguém aqui é cego a ponto de só querer que o universo seja formado por unicórnios e arco-íris. Mas o ponto é que super-heróis sempre foram arquétipos sobre o melhor do ser humano. Sobre poderes e responsabilidades. Sobre fazer o bem, sobre espalhar uma mensagem de paz para aqueles que precisam, as minorias, os fracos, os necessitados. Sobre mostrar que todos nós podemos e devemos fazer a nossa parte, que devemos ser heróis também, mesmo nos momentos de pior adversidade.

No mundo cheio de trevas em que vivemos, que nós, sim, sabemos que tá UMA MERDA, a última coisa da qual precisamos é que todos os heróis se tornem frios, cruéis, sanguinários, que façam justiça com as próprias mãos, olho por olho, dente por dente. A gente já tem isso DEMAIS na vida real. Precisamos de símbolos de esperança, que nos guiem rumo a um futuro melhor, que nos permitam acreditar que ainda existe luz em meio às trevas.