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Godzilla vs. Godzilla

Diretamente do CinemAqui, o chapa Vinicius Carlos Vieira fala sobre similaridades e diferenças dos muitos filmes, japoneses e americanos, estrelados pelo lagartão

Por VINICIUS CARLOS VIEIRA*

Godzilla foi visto pela primeira vez em 1954, apenas nove anos depois do ataque dos Estados Unidos em território japonês. Foram duas bombas atômicas, uma em Hiroshima e outra em Nagasaki. Mais de 210 mil mortes diretas e um país que teve que se redescobrir, reconstruir e lutar contra seus fantasmas por décadas e décadas. Na verdade, ainda está nesse processo e, muito provavelmente, nunca irá se livrar dessas lembranças. Mas o que Godzilla tem a ver com isso? Bom… TUDO.

Isso quer dizer que a gente está tentando colocar política no seu filme de Kaiju? Sim, também. A gente e a Toho Film Company, produtora e distribuidora dos filmes do lagartão. São 33 filmes criados pelos japoneses, incluindo o mais recente, Godzilla Minus One (que decididamente nem ao menos esconde seu lado político).

Mas é bom voltar no tempo para deixar tudo mais claro. O filme de 1954 apontava a criatura como uma espécie de réptil pré-histórico que foi acordado e ganhou poder através do contato com muitos anos de radiação. E eles falavam tanto da bomba quanto de outro caso que ficou famoso na época, o do “Daigo Fukuryū Maru”, um navio de pesca de atum que teve sua tribulação de 23 pescadores contaminada pela radiação dos testes de uma bomba termonuclear dos Estados Unidos no Atol de Bikini, também em 1954.

O Godzilla que atacou o Japão era então uma mistura clara do medo de novos ataques com uma impressão de metáfora envolvendo a presença dos Estados Unidos como um “monstro gigante” destruindo o país. Mas o tempo passa, infelizmente.

Godzilla se tornou uma das personalidades pop mais conhecidas da cultura no século 20, o que fez com que sua presença nos filmes fosse se transformando de vilão para uma espécie de anti-herói. Ainda destruindo o país, mas o fazendo para impedir que outros monstros mais perigosos que ele fizessem ainda pior. Há quem entenda essa mudança como algo positivo, há quem perceba nisso o sinal dos tempos, quase como se aquelas feridas estivessem cicatrizando e tudo pudesse ser esquecido. Isso e uma certa aceitação do Ocidente.

Ainda em 1956, o primeiro Godzilla chegava ao mercado americano, mas com algumas cenas refilmadas e inseridas no original substituindo certas coisas da trama e criando “algo novo”. O modo “artesanal” das produções se tornou uma espécie de “fetiche ocidental”, já que até 2004 os filmes originais com o monstrão ainda eram filmados com um ator vestindo uma roupa de Godzilla e pisando em miniaturas da cidade. Meio tosco, mas adorado pelos fãs.

Um tempo que ficou para trás.

O último, Minus One, não só trouxe um visual em CGI completo, como teve seu trabalho reconhecido mundialmente e levou para a casa o Oscar de Efeitos Visuais. Minus One ainda traz de volta a ideia original. Não só isso, além de se enxergar como um metáfora poderosa e gigante, ainda tenta acompanhar um Japão castrado por uma imposição americana que não lhe permitia revidar e sequer encontrar sua própria força diante de sua história de sobrevivência.

Enquanto isso, do outro lado do Oceano Pacífico…

Godzilla tinha o nome no cartaz de outro filme, mas não passava de um coadjuvante de luxo do Kong. Sem o “King”, porque naquele mundo o Kaiju japonês ainda dá uma surra no macacão, mesmo com muito menos tempo de tela. Mas também nem sempre foi assim do lado de cá da capacidade de entendimento do personagem. E antes de estar ruim como hoje, já esteve melhor… depois de bem pior.

Lá no meio dos anos 90, Roland Emmerich se tornou rapidamente sinônimo de um dinheiro bem gasto para os estúdios. Na verdade, depois de quatro filmes absolutamente desprezíveis, amadores e com uma cara enorme de filme ruim dos anos 80 que ficava perdido nas locadoras, o cineasta fez um quinto filme “com uma cara enorme de filme ruim dos anos 80 e que ficaria perdido nas locadoras”, mas que para a surpresa de muita gente, virou Soldado Universal e o colocou na vitrine de Hollywood.

Na sequência, fez o divertido Stargate, o que lhe abriu as portas para Independence Day. Convenhamos, deixando os quatro primeiros de lado (e não citando os nomes para não haver perigo de ninguém procurá-los), Emmerich fez um trio de filmes que fez sucesso, mas não tinha um pingo de sutileza e muito menos qualquer tipo de analogia, metáfora ou qualquer outra figura de linguagem que você lembrar o nome. Por que então não dar Godzilla na mão dele?

O resultado foi um desastre de proporções maiores que o próprio monstrão. Nem o coitado do visual do personagem foi respeitado, já que sua silhueta poderosa, corpulenta e divina, como se fosse grande demais para se preocupar com os pequenos humanos, se tornou esguia, ágil e saída de algum lugar da árvore genealógica do T-Rex do Spielberg.

E quando pode ficar pior, em Hollywood, sempre fica. “Gojira” vai para Nova York “porque sim”. Bota uns ovos no metrô, perde espaço de tela para seus bebês, não consegue capturar um táxi e morre. Sim, os seres human… perdão, OS AMERICANOS, com suas armas e caças, derrotam o Godzilla.

O “sucesso” da versão yankee foi tão grande no Japão que a Toho nem sequer considera aquela coisa um Godzilla, o que acabou fazendo com que na “Terra do Sol Nascente” o “lagartinho” se tornasse apenas o “Zilla”. Sem “God”.

Essa ideia de divindade e do quanto o ser humano é pequeno e ignorável talvez tenha sido uma das ideias que fez Monstros, de 2010, nascer. Um filme sobre extraterrestres gigantes que dominaram a Terra e simplesmente ficaram por aí no mundo, ignorando seus futuros ex-habitantes. A ideia de Gareth Edwards (diretor) era se manter sempre próximo de seus protagonistas humanos, como se a todo tempo sentissem pequenos e impotentes diante dessas criaturas enormes. 

O cheiro de Godzilla estava no ar em Monstros. Portanto, Edwards acabou ficando com a oportunidade de levar o Kaiju japonês de volta para Hollywood. O acerto foi preciso. O clima do filme pairou sobre a ideia geral e o novo Godzilla não era um personagem, mas sim uma ideia. Algo maior do que o filme e seus personagens. Visto de relance e sempre como algo meio incompreensível e maior do que qualquer força. O público americano em 2014 achou que tinha pouco Godzilla para muita conversa. E também que o próprio praticamente não era visto direito no filme – o que deixa bem claro o quanto os americanos não conseguem entender aquilo que rolou em 1954.

Com muito dinheiro e Godzilla para todo lado que você olhasse, mas pouca vergonha na cara, Godzilla II: Rei dos Monstros nasceu para corrigir o tom reprimido e sufocante do filme anterior e substituir isso por qualquer bobagem que viesse na cabeça dos roteiristas como desculpa para Godzilla enfrentar um monte de monstros gigantes já clássicos da Toho, mas que ainda não tinha dado o ar da graça em Hollywood. Junte a isso uma mitologia ainda mais estapafúrdia sobre “Titãs” e o caminho estava pronto para Godzilla vs. Kong, com direito até ao famigerado “Mechagodzilla”.

Os dois filmes foram um sucesso estrondoso (junto com Kong: A Ilha da Caveira). Muitos dólares nos cofres da Legendary Pictures, dona do Godzilla nos Estados Unidos, e a impressão de que, enquanto o dinheiro estiver pingando nos cofres, Godzilla estará sendo mal entendido do lado de cá do Pacífico. O que levará seus espectadores e fãs teimosos a coisas como Terra Oca e uma luvinha para o Kong (no último!).

Enquanto isso, do lado de lá, Minus One explodiu as barreiras do Japão e se tornou um sucesso mundial, tanto por ser realmente bom, quanto por dar a clara impressão de que aquele monstrão de 1954 continuava vivo e, muito provavelmente, deve dar fôlego para mais produções que se preocupem com as mesmas coisas que fizeram esse senhor de 70 e poucos anos se tornar tão eterno.

Por mais que o pessoal de Hollywood teime em não entendê-lo.


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* Editor, criador e crítico do CinemAqui, jornalista por formação, escritor por definição e chato por natureza. Viu filmes demais e leu mais quadrinhos do que devia, o resultado foi essa vontade de discutir, entender e se emocionar com ambos. Se tornou crítico de cinema pelo amor à Sétima Arte e continua a cada dia ainda mais apaixonado por cada frame, quadro, quadrinho ou linha escrita.

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