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Os 35 anos de The Queen is Dead. Apesar do Morrissey.

Mesmo com todas as merdas que o seu vocalista andou (e anda) dizendo por aí nos últimos anos, o terceiro e mais famoso disco do quarteto de Manchester, lançado no dia 16 de junho de 1986, ainda soa atual e merece ser celebrado

Por GABRIELA FRANCO

(adaptação de um texto publicado originalmente no JUDÃO.com.br)

O indie, sem romantismos, na verdade se caracterizaria originalmente pelas bandas que produzem e distribuem seu material de forma independente, sem o auxílio monetário ou de marketing de grandes gravadoras. Os Smiths, aquele quarteto de Manchester, até pode ter começado assim – apesar de ter inicialmente assinado com a Rough Trade, um selo de médio porte mas que era bem estabelecido entre os alternativos dos anos 80 – mas teve um alcance estratosférico, muito mais por conta do ineditismo de seu trabalho do que por seus esforços para manter-se indie (tanto que assinaria com a EMI anos mais tarde).

Hoje em dia, no entanto, quando qualquer um é capaz de gravar e distribuir GRATUITAMENTE seu trabalho, o INDIE perdeu seu significado original e acabou ficando mais conhecido por sua estética, sendo caracterizado pelo gênero que prefere expressar toda sua raiva e indignação, tão familiares ao rock, de forma menos espalhafatosa e agressiva e mais sentimental, profunda e intimista.

Para o indie, sempre foi mais importante criar um paralelo, um elo de ligação entre suas canções e o dia a dia do seu ouvinte, ou ainda pontuá-las de referências literárias ou lembranças emocionais da infância, capazes de fazê-lo refletir, se emocionar ou indignar-se. Muito mais do que incitá-lo a repetir refrões de impacto em grandes estádios, ficar bêbado e jogar televisões pelas janelas de quartos de hotéis. É o rock dos introvertidos e sensíveis.

A forma de sentir a música proposta pelo indie sempre foi mais intimista e solitária. E nisto, The Smiths foi magistral, marcou época, deixou seu legado, impactou gerações e estabeleceu uma nova forma de se fazer rock. Com influência bastante proeminente do punk, shoegaze, rockabilly e hardcore, eles com certeza criaram um estilo próprio, sendo praticamente pais dos indies de hoje (ou do tal “rock alternativo”, como queira chamar).

A Rainha Está Morta

Apontado por inúmeras revistas do gênero (NME, Uncut, Melody Maker, Rolling Stone, Billboard) como sendo um dos melhores álbuns de TODOS OS TEMPOS, The Queen is Dead (1986), seu terceiro disco, realmente alçou a banda a novos patamares, tanto musicais quanto líricos, e a consolidou para sempre entre os grandes da história do rock.

Meat is Murder, do ano anterior, pode até ter sido um marco, com o lançamento do single homônimo com forte apelo político e social e da indefectível How Soon is Now, talvez a música mais famosa do Smiths, mas The Queen is Dead é uma sucessão de clássicos. Bem, quando um disco contém 10 músicas e 5 delas explodem nas paradas permanecendo várias semanas em primeiro lugar (Billboard UK e US) acho que podemos chamá-lo de um sucesso, não? 😉

Talvez o principal segredo de seu brilhantismo esteja no encontro transcendental que cunhou a existência da banda, destes que acontecem uma vez na vida, do tipo Lennnon-McCartney, Jagger-Richards, Plant-Page: as letras ácidas e trágicas de Steven Patrick Morrissey e a habilidade mágica e talento único dos riffs emblemáticos de Johnny Marr.

Um parêntese aqui – NÃO, aqui a gente não passa pano pro Morrissey, pras merdas que ele diz, seu racismo, sua xenofobia. E você também NÃO deveria. Mas relembrar The Queen is Dead é também homenagear os outros 50% desta força criativa, Johnny Marr. E ele merece MUITO.

Dito isso…

The Queen is Dead – que era para se chamar “Margareth on the Guillotine” em uma clara alusão à uma suposta execução da então Primeira-Ministra Margaret Thatcher – é eficiente e certeiro, o disco mais maduro dos Smiths. É seu auge. Os vocais agudos e as letras mordazes de Morrissey casam-se perfeitamente com os arpejos melódicos de Marr, sem NUNCA, obviamente, esquecer da genialidade e fluidez de Andy Rourke e a precisão da bateria de Mike Joyce.

A faixa-título já começa arrasadora, em um estampido, com a gravação de Take Me to the Dear Old Blighty, uma canção que ficou famosa na 1ª Guerra Mundial e que fala sobre as belezas da Grã-Bretanha, uma clara alfinetada às tradições e instituições inglesas. A batida se mantém e o contratempo é feroz, quase um punk rock, em ritmo e atitude, com uma densa camada de guitarras engendrada por Marr.

Frankly, Mr Shankly não teve muito destaque, mas vale a menção porque foi uma resposta direta ao dono do selo Rough Trade, Geoff Travis, com quem a banda travava uma luta nos tribunais durante a gravação do disco. Já I Know it’s Over é uma típica balada romântica, considerada uma das obras-primas dos Smiths e Morrissey admite ter sido muito pessoal na composição de seus versos. Na época, ele era muito questionado sobre sua sexualidade e pretenso “celibato” e suas músicas falavam muito sobre solidão. Versos como “Se você é tão legal, por que está sozinho essa noite?” eram perguntas que jornalistas faziam para o cantor, por exemplo.

Outro single que merece holofotes foi composto em escala menor, tocado em pestana e com uma certa inspiração flamenca, elemento que Marr gostava muito de usar em praticamente todas as músicas da banda. Começa com uma introdução tirada de um mix das canções Hitch Hike do Marvin Gaye e There She Goes Again do Velvet Underground. O resultado é There’s a Light that Never Goes Out que fala sobre uma eterna sensação de deslocamento, tédio e desesperança frente a esse mundo.

Apesar do produtor da banda na época insistir para que essa fosse a música de trabalho do álbum, a banda preferiu Bigmouth Strikes Again, sobre as sempre polêmicas declarações de Morrissey à imprensa (AHLÁ). Mas seu poderoso refrão byroniano – “And If a double-decker bus, crashes into us, to die by your side is such a heavenly way to die” – ganhou os corações de jovens angustiados pelo mundo. Tudo isso, amarrado pelos doces acordes de Johnny Marr, e um Emulator que remetia à uma flauta, tornaram There is a light… uma das mais belas canções da música pop, praticamente um hino à incerteza que foi a década de 80.

Cemetry Gates (assim com a grafia errada mesmo) fazia alusão às acusações de plágio que Morrissey sofria por citar muitas vezes em suas canções trechos de obras literárias ou da dramaturgia – “Keats and Yates are on your side, but Wilde is on mine”, admitindo, finalmente, a grande influência que o escritor Oscar Wilde tinha sobre suas letras e modo de vida. Tem uma estrutura musical simples, mas memorável. Dessa vez, o baixo de Rourke faz a base para a harmonia e brilha lindamente.

Outro single que chamou atenção no álbum foi The Boy with the Thorn in his Side que tem origem e significados dúbios. Morrissey disse em diversas entrevistas que era referente à imprensa e às grandes corporações musicais que nunca levavam as vontades da banda a sério por mais que eles dissessem a verdade, mas também faz alusão à comunidade LGBT da qual o artista sempre fez parte, apesar de na época não assumir.

O título mesmo leva a isso. A expressão inglesa pode ser traduzida como “O garoto com a pedra no sapato”, já que thorn in his side pode significar um “espinho na carne”, algo que causa tormento constante. Mas, ao mesmo tempo, faz referência a São Sebastião, considerado por alguns como o santo padroeiro dos gays, tema que também foi explorado em Vicar in a Tutu com sua cota de ataque à Igreja, obviamente.

No fim, sim, The Queen is Dead é o disco mais punk dos Smiths

A capa traz o lindíssimo ator francês Alain Delon, no filme Terei o Direito de Matar? (1964) em tons esverdeados. Aparentemente a escolha da foto não sem significado algum, é apenas atribuída ao gosto de Morrissey por homens bonitos e nouvelle vague. Mas não se engane: The Queen is Dead é o disco mais punk dos Smiths. Apesar de suas composições melodiosas, a maioria das letras se refere à um Reino Unido devastado por uma subserviência à monarquia e à religião, ao álcool, às drogas, sufocado pelas medidas ferrenhas do Thatcherismo.

E as circunstâncias eram impiedosas para aqueles que, como os Smiths, tinham sido criados na classe trabalhadora. Sindicatos caíam, o desemprego atingia níveis catastróficos e a política governamental de Thatcher de transformar uma sociedade industrial e de produção em uma sociedade baseada em consumo substituía a estabilidade de empregos fixos por bicos com salários mínimos gerando insatisfação, medo, desesperança. Isso sem falar da ameaça constante da Guerra Fria entre EUA e União Soviética.

Esse medo do desconhecido foi o grande zeitgeist dos anos 80 e o responsável por gerar grandes pérolas do cancioneiro da década. The Queen is Dead não tinha a fúria e a crueza de uma God Save the Queen dos Sex Pistols, mas a calma aparente e a poesia eram o jeito dos indies fazerem a sua revolução. Sarcástica, mas não menos eficaz. Foi o último disco com o qual a banda saiu em turnê e as lembranças nostálgicas desses shows tiveram um peso em sua “canonização” junto aos fãs.

Foi o penúltimo disco da banda, e curiosamente não é considerado pelos membros como sendo sua obra-prima: todos eles já declararam achar que Strangeways, Here We Come, gravado no ano seguinte, derradeiro para todos, era o melhor. Talvez por isso :). A banda terminou em 1987 depois de muita briga. Marr tinha apenas 23 anos, Morrissey, menos de 30.

The Queen is Dead é o disco que melhor representa os Smiths no contexto cultural e no clima político dos anos 1980. Por conta disso, talvez, tenha se tornado mais um emblema, um símbolo de uma época, do que APENAS um disco.

Seria ótimo que o Morrissey prestasse REAL atenção nas letras que escreveu ali um dia…

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