Jornalismo de cultura pop com um jeitinho brasileiro.

Raio Negro e uma trajetória cheia de altos e baixos

Chega ao fim uma das séries do canal CW inspiradas em personagens da DC Comics com maior potencial – mas que, ao mesmo tempo, por sua irregularidade, representa algumas das maiores oportunidades perdidas do Arrowverse

Por THIAGO CARDIM

O ano era 2018. Quando estreou a série do Raio Negro (Black Lightning) na telinha do canal CW, no caso mais uma das produções da incansável trupe de Greg Berlanti para o universo expandido de personagens da DC Comics, fui lá correndo devorar o piloto. Não apenas por se tratar de outro pedaço de uma construção que eu acompanhava com carinho (NESTE texto, já expliquei por qual motivo gosto e continuo assistindo a estas séries todas, então não me venha encher os pacovás), mas também pelo potencial que um seriado com ESTE protagonista em particular teria.

Inclusive, o texto que escrevi pro JUDÃO.com.br trazia como título a frase “Raio Negro não precisa do Arrowverse. Mas o Arrowverse precisaria muito do Raio Negro”. E meu pensamento, neste caso, não mudou em nada. Porque o que começou a se desenhar ali tinha mesmo um tom muito diferente da caixinha redutora de “série de super-herói” (e isso não é julgamento de valor algum, bom deixar claro).

Aquele piloto chegou pegando BEM mais forte do que Arrow, The Flash e Supergirl, por exemplo. Nos minutos iniciais, já esfrega racismo e intolerância na sua cara, mostrando sem frescuras e rodeios que foi um episódio de violência policial causado apenas e tão somente pela cor de sua pele que faz Jefferson Pierce, um diretor de escola há muitos anos afastado da “carreira” de vigilante, acordar o Raio Negro dentro dele mais uma vez.

Pois chegamos em 2021. Quarta e última temporada da série. E, ao final do episódio de encerramento, o que fica é um gostinho bastante agridoce. Por tudo que a série do Raio Negro poderia ter sido. Mas não foi. Logo na primeira temporada, a trama sofreu com uma “barrigada”, um vale de qualidade na narrativa que se tornou expediente recorrente ao longo dos quatro anos seguintes. O grande pecado da produção, que teve sim ótimos momentos, foi de fato querer ser mais super-herói do que precisaria ser.

Freeland é o mundo real

Antes do crossover Crise nas Infinitas Terras, que fez com que boa parte das séries se tornassem de fato integrantes de um mesmo universo, os produtores da série e do canal faziam questão de reforçar que Black Lightning não se passava no chamado Arrowverse. Era outra coisa, outra pegada.  

Ao contrário das demais cidades ficcionais deste rolê, Star City, Central City e National City, a Freeland da família Pierce era o mundo real. Tem trovões e relâmpagos, raios disparados pelas mãos, olhos brilhando, luzes piscando, uniforme praticamente em neon? Claro que tem. Mas as manchetes que os apresentadores televisivos desta série mostravam poderiam estar tranquilamente na SUA televisão neste exato momento. Aqui, no lado de fora, é um lugar tenso pra se viver.

O retorno do Raio Negro, cujo alter ego já era o filho favorito de Freeland, tinha muitas nuances do Black Lives Matter, que ganhava cada vez mais força na vida real. Jefferson (um cara passando dos quarenta, cuja atuação impensada como super-herói causou o seu divórcio) era diretor de uma escola que tentava a todo custo manter longe da criminalidade, da corrupção e do clima de tensão racial que tomava. Ele brigava para manter os detectores de metal fora dos portões e longe de seus alunos (“Você sabe quantas destas crianças têm pais que foram para a prisão, tios, tias, primos? Isso não pode virar uma outra prisão para eles!”, defendeu ele, em um diálogo incrível).

Era ESTE o espírito que a jornada do Raio Negro deveria ter mantido. Urbano. Real. Vívido. Engajado. E foi aí que a série se perdeu. Porque nem era o caso de que, por ser estrelada por um elenco quase que integralmente negro, a série precisasse falar sobre racismo sempre e sempre. Mas ser HUMANO, muito mais do que metahumano, mais verdadeiro, mais cidade grande, menos intergaláctico, menos cósmico, é que dava todo o tempero aqui. Os poderes eram, de fato, pano de fundo.

Conforme os episódios foram passando, vimos o foco saindo das ruas, do núcleo familiar – porque ser “pai”, aqui, é tão fundamental pro Raio Negro quanto ser “super-herói” ou “um homem negro” – do que o tornava humano e verdadeiro, para a coisa toda dos superpoderes, dos vilões escalafobéticos e seus codinomes inacreditáveis. O Raio Negro se tornava, ao longo de intermináveis quatro ou cinco episódios seguidos, mais importante do que Jefferson Pierce, o homem por trás da máscara. E aí, minha gente, Black Lightning se tornava mais uma série genérica de combatentes do crime. Até a parte novelão perdeu a graça.

A terceira temporada, então, beirou o insuportável, fazendo com que os baixos fossem muito maiores, mais longos e mais cansativos do que os altos. Tudo que se estruturou em torno da luta e da resistência contra a tal Markovia e seus planos mirabolantes, bwahahahahaha, para criar um universo de super-humanos, era chato, era bobo, era desnecessariamente complicado. E os dramas das pessoas reais, aquelas que viam no Raio Negro um farol de esperança, estes acabaram apagados.

Digamos que, de alguma forma, a quarta temporada soube “limpar” um pouco destas arestas, desta megalomania, desta vontade de ser grandiloquente, maior do que precisaria ser. Tobias Whale, o vilão mais perigoso e ao mesmo tempo mais REAL do Arrowverse, um dos maiores acertos da série, estava de volta ao papel de magnata, de manipulador, de Rei do Crime. Nada de poderes. Apenas dinheiro e muita crueldade em forma de colarinho branco, um tubarão. Do jeitinho que deveria ter se mantido desde a primeira temporada. Foi legal de ver, confesso. Queria mais.

Até o Painkiller, se preparando para uma série spin-off que no fim foi cancelada antes mesmo de começar, se tornou um personagem melhor, mais interessante, mais multifacetado. Podia ter sido. Mas não foi.

Infelizmente, foi tudo tarde demais. E até o embate final entre Jefferson e Whale foi, na falta de uma palavra melhor, anticlimático. Não foi um encerramento ruim, de todo. Foi apenas NHÉ. Achatado. Mediano. OK. Esquecível. Muito menos do que merecia. Faltou aquela força, aquela vibração, aquela emoção, que até hoje eu me lembro de ter sentido quando vi o piloto da série. Ficou um enorme abismo entre aquele momento de 2018 e este de 2021. E um abismo bastante visível.

Vale reforçar aqui que, conforme anunciado Netflix, esta 4ª e última temporada chega aos assinantes brasileiros no dia 29 de junho. Assista e depois me diga o que achou.

Aproveitando… Você conhece o Raio Negro dos gibis?

Na segunda metade dos anos 1970, a DC Comics estava realmente disposta a apostar e dar destaque a um vigilante mascarado negro. Mas a ideia original era uma bomba em potencial: Black Bomber, um racista branco que, quando ficava nervoso, se tornava um herói negro (?).

Enquanto você fica aí matutando sobre o quão merda é esta ideia, saiba que ela só não virou realidade porque o editor responsável por ela saiu da DC. Foi aí que Tony Isabella, que já tinha escrito Luke Cage pra Marvel, acabou convocado para salvar o dia e veio com o conceito do Raio Negro, que era algo no qual já trabalhava há algum tempo.

Jefferson Pierce foi um medalhista olímpico de ouro no decatlo – que, muitos anos depois, voltou com a esposa Lynn Stewart e a filha Anissa ao local onde nasceu para assumir o papel de diretor da Garfield High School. O bairro de Southside, na cidade de Metrópolis, tinha um apelido nada elogioso: Suicide Slum (ou, na versão em português, Beco do Suicídio). Foi ali que seu pai, o renomado jornalista Alvin Pierce, acabou brutalmente assassinado.

Embora originalmente o Raio Negro fosse descrito como um herói que usava um cinto que lhe permitia criar campos de energia e projetar raios de eletricidade, anos mais tarde, durante a saga Invasão, foi revelado que tudo era resultado de um gene metahumano latente. E foi por aí que a história Black Lightning: Year One, que conta as origens do sujeito, seguiu. Peter Gambi, velho amigo da família, ajudou o jovem Jefferson a INTERNALIZAR e manter escondidas as suas habilidades durante grande parte de sua vida, para evitar que alguém se ferisse. Mas assim que o cara volta para a vizinhança e reencontra Gambi, a história é outra.

Nas ruas, uma guerra de gangues está assustando a população. Depois que um de seus mais brilhantes estudantes se torna vítima da luta por território, Jefferson assume a identidade secreta de Raio Negro e se torna um combatente do crime. Grandes poderes, grandes responsabilidades.

Já ouviu isso antes?

Embora não se saiba muito bem quanta energia elétrica o Raio Negro pode gerar, tenha em mente aí que ele foi capaz de fazer o coração do Superman bater novamente depois que o Azulão sofreu uma exposição quase fatal à kryptonita. Seus campos de força são capazes até de repelir balas, além de conseguir criar campos eletromagnéticos de repulsão que lhe permitem voar. Junte a isso o fato de que suas capacidades de condicionamento olímpico foram aprimoradas por um treinamento com ninguém menos do que o Batman e você vai entender que ele é rápido e forte o suficiente para se garantir na porrada também sem seus poderes.

A relação do Raio Negro com o Batman, aliás, é bastante profunda. Depois de um incidente envolvendo a morte acidental de uma pessoa, o herói acabou perdendo suas habilidades elétricas. E foi o Morcegão que descobriu que se tratava de uma questão psicológica e o ajudou a recuperá-los, a tempo de dar uma força para resgatar Lucius Fox na Markovia. Como resultado, Raio Negro acabou convocado para o time liderado pelo Morcegomem, os Renegados, ao lado de gente como Geoforça, Halo, Metamorfo e da Katana (aquela mesma do Esquadrão Suicida).

Depois de recusar uma vaga na Liga da Justiça em algum momento dos anos 1980, convidado pelo Arqueiro Verde, o Raio Negro acabou se tornando integrante do time na fase escrita por Brad Meltzer (de Crise de Identidade). Mas, no começo dos anos 2000, Jefferson Pierce assumiu um cargo ainda mais duro: secretário de educação do governo dos EUA, na gestão do presidente Lex Luthor (é, isso aconteceu mesmo). A intenção era fazer um trabalho mais efetivo estando dentro do sistema do que fora dele. Mas depois que Pete Ross, vice de Luthor e outrora melhor amigo de Clark Kent, assume a Casa Branca, ele acaba saindo – afinal, sua identidade como Raio Negro é considerada “o segredo mais mal guardado de Washington”.

Nas HQs, o Raio Negro tem DUAS filhas, ambas herdando geneticamente os poderes do papai. A mais velha, Anissa, chegou inclusive a assumir a alcunha de Tormenta (Thunder) e até entrou para os mesmos Renegados dos quais seu pai fez parte. Já a mais nova, Jennifer, também se tornou super-heroína: Rajada (Lightning) foi convocada para fazer parte da Sociedade da Justiça da América e até apareceu, numa versão futura, em O Reino do Amanhã, a histórica série escrita por Mark Waid e ilustrada por Alex Ross.

Mas sabe de quem o Raio Negro NÃO é pai? Do jovem Static, conhecido por aqui pelo nome do desenho animado que estrelava, Super Choque. A questão de ambos serem negros e dos poderes serem similares fazia com que Jefferson fosse constantemente questionado sobre os dois serem parentes – como ele revela, meio contrariado, em Justice League of America vol. 2 #27. Criação da Milestone Comics, o Static fez durante muito tempo parte do panteão da DC e chegou, inclusive, a ser integrante dos Novos Titãs. Em sua passagem pela equipe de jovens heróis, descobrimos que o Raio Negro é uma espécie de ídolo para o garoto, que tem até um pôster do camarada em seu quarto na Torre Titã.

Até metalinguisticamente, vejam vocês, dá para dizer que a representatividade importa sim.