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Quem vigia o Uatu?

Observador dos maiores eventos do Universo Marvel e narrador dos gibis clássicos da série “O que aconteceria se… ?”, ele será também o ponto central da nova série animada What If…?

Por THIAGO CARDIM

Ao final da série do Loki, quando a linha temporal do chamado Universo Cinematográfico da Marvel se partiu em mil pedaços e trouxe para telonas e telinhas o conceito de MULTIVERSO tão conhecido de quem lê gibis, entramos oficialmente na reta para produções como Doutor Estranho no Multiverso da Loucura, Homem-Aranha: Sem Volta para Casa e Homem-Formiga e a Vespa: Quantumania.

Mas, para já ir acostumando a galera sobre as possibilidades das linhas do tempo alternativas, a Marvel lançou na última semana (dia 11/8) a série animada What If. O conceito vem de uma antologia de HQs de mesmo nome (conhecidas aqui no Brasil como “O que aconteceria se…”), que se tornaram famosas pela narração de um personagem cósmico icônico, o Vigia.

E é justamente ele, cuja raça apareceu nos filmes apenas fazendo graça na cena pós-créditos de Guardiões da Galáxia 2 junto com Stan Lee, quem narra a nova série, com o belíssimo vozeirão de Jeffrey Wright (que, aliás, será o Comissário Gordon em The Batman, com Robert Pattinson).

O personagem, criado pela dupla dinâmica Stan Lee e Jack Kirby, apareceu pela primeira vez em Fantastic Four #13, gibi publicado em abril de 1963. Embora nem tivesse nome naquele momento, ele acabou aparecendo com certa periodicidade nos gibis da primeira família de heróis da Marvel, passando a estrelar, no ano seguinte, suas próprias histórias, batizadas de Tales of the Watcher, que funcionaram como história secundária entre os números 49 e 58 de Tales of Suspense, nos sete números de estreia do Surfista Prateado e na edição 23 de Marvel Super-Heroes. Sua origem MESMO (e sobre a qual falaremos mais pra frente) só seria revelada em um arco de Tales of Suspense #52-53, enquanto seu nome só viria à tona quase dez anos depois, no gibi de número 39 do Capitão Marvel.

Ah, sim, caso você esteja se perguntando, o Vigia se chama Uatu.

O que aconteceria se… ?

Uatu ganharia um papel proeminente no imaginário dos fãs a partir de 1977, quando foi lançada a antologia What If…?. Estamos falando de uma série de gibis com histórias fechadas a cada número, ambientadas em realidades alternativas sem conexão com a cronologia corrente e sempre narradas pelo Vigia, observando a humanidade sem poder interferir, diretamente de sua base de operações na Lua.

Na real, What If foi um título que foi e voltou da lista de publicações da Marvel Comics muitas vezes, mantendo Uatu como contador de histórias oficial durante grande parte de sua existência – mas esta primeira fase, que durou até outubro de 1984, trouxe algumas das histórias mais icônicas, como a primeirona, que era “O que aconteceria se o Homem-Aranha tivesse entrado pro Quarteto Fantástico?”. Além desta, outra com o Cabeça de Teia, “O que aconteceria se Gwen Stacy nunca tivesse morrido?”, é considerada um clássico desta série de gibis – e talvez até da própria Marvel, como um todo.

No geral, a ideia destas histórias do tipo “o que aconteceria se…” sempre foi o quanto uma pequena mudança na trama como a conhecemos originalmente poderia gerar consequências imensas, alterando completamente os rumos de cada personagem dali pra frente.

Uatu só se afastaria deste papel de narrador ao final da segunda fase da HQ – quando foi punido por destruir um outro Vigia, lá no gibi do Quarteto. Aí, já tava mais do que claro que este título de “observador isento” não era muito a do nosso Vigia, que acabou se apegando a este pequeno planetinha azul do Sistema Solar cheio de criaturas interessantes…

Ah, sim, agora um pouco de história.

Por falar no Uatu…

“Sendo de uma raça imortal, eu sempre ponderei sobre o que vem após o evento que os mortais chamam de ‘morte’. Hoje, eu posso muito bem aprender. O que quer que aconteça, eu permanecerei fiel ao meu encargo e observarei tudo o que ocorre. Um final adequado, eu acho, para o ser conhecido como… o Vigia”

Bilhões de anos atrás, uma raça de seres extraterrestres muito avançados tecnologicamente decidiu que seria sua tarefa proteger o universo e ajudar aqueles num estágio menos avançado. Ou seja, no começo eles vigiavam menos e atuavam bem mais… Quer dizer, é o que eles pretendiam. Porque em um experimento inicial, quatro de seus representantes apresentaram a energia atômica ao povo do planeta Prosilicus. Mas, como você pode bem imaginar, a ganância falou mais alto e, ao invés do desenvolvimento de sua comunidade, os nativos desenvolveram armas e travaram uma sangrenta guerra contra seus pares, para horror dos ETs evoluídos que só pensavam em ajudar. Os objetivos eram nobres, porém…

A partir daí, os Vigias resolveram criar um pacto de não-interferência. Seu líder, Ikor, criou um severo código de observação passiva, que acabou sendo questionado por seu filho – o leitor mais atento já deve ter sacado que se tratava de Uatu, o próprio. Ele defendia que esta postura poderia colocar em risco povos que, em perigo, precisassem da ajuda dos observadores passivos. Mas o paizão foi inflexível. E a partir daí é que esta raça assumiu o nome de Vigias.

Milhares de anos depois, Uatu se deparou com uma situação que testou os votos de seu povo ao testemunhar uma raça de nome Yrds descartando seu lixo atômico ao lançá-lo no espaço, o que obviamente representava uma ameaça potencial para outros mundos vizinhos. A massa de resíduos atômicos esteve no radar do Vigia por décadas, até que ele testemunhou uma supernova lançando um planeta fora de órbita. Outro perigo potencial terrível – que, quando se chocou com a nuvem de lixo atômico, levou à destruição de ambos. Seu pai, portanto, deveria estar certo. O destino tinha seu próprio caminho e seu jeito de resolver as coisas.

Então, os Vigias acabaram designados a observar, das luas de determinados planetas, as atividades que ali se desenrolavam. E a missão de Uatu acabou sendo aqui mesmo, na Terra. Ele construiu uma cidadela para si na área azul da nossa lua e, além de observar a história por aqui, também abriu o seu olhar para as nossas realidades paralelas.

Cronologicamente, o que teria sido o primeiro encontro do Vigia com um terráqueo aconteceu justamente no ano de 1602, quando uma versão futurista do Capitão América foi enviada para o passado, causando uma série de problemas no tecido do espaço e do tempo, ameaçando inclusive a própria realidade. No fim, Uatu acabou revelando a situação à versão daquela era do Doutor Estranho, que deu um jeito de corrigir a linha do tempo. No fim, aquela linha temporal divergente, a da trama escrita por Neil Gaiman, passou a existir por conta própria, sendo chamada de Terra-311.

Importante destacar aqui que a realidade na qual a cronologia “normal” acontece, aquela cuja continuidade é a corrente e padrão nos gibis, é chamada recorrentemente de Terra-616. Há quem defenda que a cronologia da Marvel nos cinemas e nas atuais séries de TV, o chamado MCU, acontece na Terra-199999. Mas isso sabe-se lá até quando.

A paixão de Uatu pelos heróis

Desde que, em uma de suas primeiras lutas contra o vilão russo Fantasma Vermelho, o Quarteto deu de cara com aquele enorme e impassível humanoide careca, ficou claro o seu interesse imediato pelas batalhas que se desenrolavam com aquele bando de gente fantasiada, todos cheios de dramas complexos. Ele chegou não apenas a avisar a trupe de Richards sobre a ameaça do Homem-Molecular, por exemplo, como ajudou pessoalmente a capturar o sujeito, antes de voltar ao seu posto de observação silenciosa. Ao perceber a ameaça do viajante do tempo Kang (ah, a ironia…), mandou o Coisa e o Tocha Humana ao passado para preservar a história. Diabos, ele até oferecer a sua cidadela na Lua para que Reed e Sue passassem a sua lua de mel depois do casamento! <3

Quando o Surfista Prateado, arauto do devorador de mundos Galactus, pintou no nosso planeta pela primeira vez para trazer seu mestre em busca de uma refeição, Uatu chegou a usar seus próprios equipamentos para tentar “esconder” a Terra – e quando não conseguiu mais, foi lá e avisou o Quarteto. Ainda tentou se meter a negociador, de entidade cósmica pra entidade cósmica, mas a fome do grandão roxo falou mais alto. Então, o Vigia deu lá uma ampliada nos poderes do Tocha Humana, guiando Johnny pelo hiperespaço em busca da única arma capaz de fazer Galactus tremer, o chamado Nulificador Total.

Por conta desta transgressão, Uatu chegou a ser julgado por seus pares Vigias e chegou até a ser condenado e afastado de suas funções – não sem antes participar na defesa de Reed Richards em seu próprio julgamento, justamente por salvar a vida de Galactus. No final, ao lado de Odin, de Eternidade e até do próprio Galactus, eles conseguem provar que Reed é inocente e que o devorador de mundos é parte da manutenção do equilíbrio universal.

Se isso não é gostar de seus amigos terrestres, olha…

Morte e Renascimento (apenas porque “Marvel”, né)

Em 2014, na saga Pecado Original, não apenas a gente é apresentado ao passado de Uatu, mas também somos obrigados a presenciar a sua morte. Na real, sem neuras com spoilers, porque isso acontece no COMEÇO da história. O Vigia é brutalmente assassinado (usando enormes balas irradiadas com radiação gama) e seus olhos são arrancados – fazendo com que os Vingadores e demais heróis da Terra iniciem uma busca pelo responsável.

No fim, resumindo o enredo rocambolesco, um vilão chamado Orbe (que alguns chamam de “O Olho”) arrancou um dos olhos de Uatu, mas não foi o responsável por sua morte. Porque a extração do outro olho e, consequentemente, o assassinato do Vigia foram causados por ninguém menos do que Nick Fury – sim, ele mesmo, o da SHIELD. Mas a versão clássica, o homem branco e grisalho, e não a versão Samuel L.Jackson dos filmes (que veio do chamado Universo Ultimate, mais uma realidade paralela da editora).

Resumindo a história, Nick teve, durante muitos anos, uma missão secreta, um cargo cósmico além da SHIELD, enfrentando seres extradimensionais e subterrâneos. Como parte deste fardo, ele chegou pra ajudar Uatu depois do primeiro ataque – mas o Vigia se recusou a contar os nomes dos culpados, pois isso seria contra o seu juramento de não interferir (que ele já tinha quebrado DEZENAS de vezes, mas tudo bem). Aí, Fury sacou que os olhos de Uatu guardavam tudo que ele já tinha visto e, para identificar os criminosos e evitar que eles fugissem com o perigoso conhecimento e com as armas da cidadela de Uatu, ele então o mata e usa seu olho para fazer justiça.

O caso é que, sem a tal Fórmula do Infinito com a qual era inoculado recorrentemente para evitar que seu corpo envelhecesse, utilizada para salvar o dia ao final da grande saga anterior (Era Heroica), Nick Fury teve o peso dos anos cobrado de si e começou a ficar rapidamente velhinho. Ele precisava de um substituto. Mas, ao final da batalha derradeira de Pecado Original, todo mundo acha que Fury morreu – só que, na real, ele parece ter absorvido as habilidades de Uatu e se tornado um observador silencioso da Terra, uma espécie de Vigia que atende pelo nome de Invisível.

Mas cê acha que acabou? Nem de longe.

Durante a recente saga Impéryo, atualmente sendo publicada por aqui, tudo que podemos dizer é que Uatu é trazido de volta à vida e estabelece um NOVO vínculo com Fury – além de descobrir que, se alguma forma, seus irmãos é que foram responsáveis pelo surgimento da figura do Invisível.

Em se tratando de HQs da Marvel, a palavra-chave é sempre… AGUARDE AS CENAS DOS PRÓXIMOS CAPÍTULOS.

O Vigia no MCU

“Tempo. Espaço. Realidade. É mais do que um caminho linear. É um prisma de possibilidades infinitas, no qual uma única escolha pode ramificar-se em realidades infinitas, criando mundos alternativos daqueles que você conhece. Eu sou o Vigia. Sou seu guia através dessas vastas novas realidades. Siga-me e pondere a questão ‘o que aconteceria se?'”

Em uma entrevista para o Deadline, Brad Winderbaum, produtor executivo de What If…?, deixou claro que está longe de ser coincidência que a série animada tenha sido apresentada exatamente depois do final de Loki. “O multiverso explodiu em todas as direções possíveis. What If…? nos dá a chance de explorar isso. Eu creio que, sem entrar em muitos detalhes, esta série existe no MCU e é tão importante quanto qualquer outra produção dentro do plano geral”.

Já pro Inverse, Winderbaum afirmou que veremos, refletida na série, também a questão da interferência. “O Vigia sempre aparece quando as coisas ficam realmente importantes e assustadoras”, diz. “Quando ele dá as caras nos quadrinhos, por mais que seja só no pano de fundo, e os personagens percebem, sacam que a parada ficou séria. (…) Ele só observa. Ele fez um juramento. Ele tem certas razões pra isso. Mas, como os fãs dos gibis sabem, ele inevitavelmente faz suas intervenções. Não quero dar detalhes. Mas posso dizer que o Vigia é um personagem tridimensional e que pode ser uma entidade poderosa, mas seu coração é bem humano”.

Conversando com o Comicbook.com, o próprio ator, Jeffrey Wright, deixa no ar o futuro do Vigia no MCU, talvez saindo da série animada e indo inclusive parar nos filmes. “Ele chuta muitas bundas, ele é incrível, cara. Quero dizer, não é alguém pra se brincar. Não se engane, eu observo até não estar mais, pelo menos naquele momento. Então, sim. Ainda tem algumas coisas divertidas para se fazer com ele. Veremos como a coisa toda se desenrola”.