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Get Back: redescobrindo os Beatles

Quando a gente pensa que conhece os quatro de Liverpool, chega um documentário dirigido por Peter Jackson e nos mostra que eles eram ainda mais geniais, intensos e únicos do que poderíamos imaginar

Por GABRIELA FRANCO

Estreou no último dia 25 de novembro, na plataforma de streaming da Disney, o documentário The Beatles: Get Back, um mergulho de praticamente 8 horas de material filmado durante 22 dias do mês de janeiro de 1969, período em que a banda gravou o último disco que lançaram, Let It Be. O material foi organizado, editado, restaurado e montado por Peter Jackson, o diretor de “O Senhor dos Anéis”. Portanto, 22 dias e infinitas horas captadas viraram 3 LONGOS capítulos, como é de praxe de Jackson, o homem que ama uma trilogia. 

O primeiro episódio mostra os FabFour se encontrando depois do período de festas (“Feliz Ano Novo, John!”, grita Ringo de trás da bateria) com a ideia de gravarem um novo disco – que seria o último (só explicando a bagunça: Abbey Road foi o último a ser gravado, mas foi lançado antes de Let it Be) e ainda fazerem um especial de TV e uma inédita aparição em público depois de um grande hiato. 

A aparente desconexão entre os quatro fica clara e, particularmente, achei esse primeiro episódio o mais difícil de assistir, com muito tempo de jams aleatórias na tentativa de dar à luz ao próximo hit, muitas conversas soltas, ainda que tenha sido deveras interessante para observar o comportamento da banda, já que não temos nenhum outro material gravado que mostre tanta intimidade e detalhes dos Beatles desde Anthology, mas acontecem situações interessantes.

É, gente, tão filmando, e agora?

No começo, John, Ringo, Paul e George parecem desconfortáveis com a presença opressora das câmeras captando cada movimento, indecisos sobre quais rumos devem tomar, se vão levar a cabo todos os projetos desenhados até ali, nervosos com a possibilidade de fazerem um novo show, e naturalmente pressionados com a demanda de entregarem 14 músicas até o final do mês para compôr um novo disco. 

Neste cenário, algumas características dos quatro ficam mais evidentes, tais como as de um Paul McCartney tomando as rédeas da produção, costurando a incrível colcha de retalhos criativos que compreende a composição de uma canção, tentando encaixar melodias, letras, desenhar arranjos, manter os ânimos e ainda cumprir prazos. Ele parece ser o mais pé no chão, tendo que tomar decisões, lidar com o diretor do documentário, executivos da Apple (a empresa deles, não a do Steve Jobs, só pra esclarecer), técnicos de som – o que muitas vezes o enfastia, fazendo com que demonstre sobrecarga. 

“Falem com o John”, diz, sem tirar os olhos do teclado do piano enquanto tenta se dedicar à composição do último grande sucesso da banda, mas é constantemente interrompido pelo staff. George, por outro lado, aparenta estar irritado, não fica contente com a aparelhagem de som do estúdio e se sente diminuído porque não consegue chegar nos riffs pensados previamente por Paul. “Vocês querem um Eric Clapton” diz em um certo momento, no que Paul responde: “Não, quero um George Harrison”. 

A coisa esquenta entre os dois quando Paul se mostra intransigente à uma proposta de arranjo de George e este simplesmente abandona o ensaio. É John Lennon quem vai atrás dele em sua casa e o convence a retomar os trabalhos – o que, nestas idas e vindas, leva uma semana.

O irônico é que, naquela época, George estava em seu momento mais criativo, com dezenas de canções compostas, sendo que algumas foram parar em Abbey Road como as icônicas “Here Comes The Sun” e “Something” – outras compuseram o set list the Let It Be como “I, Me Mine”, “For Your Blue” e outras ainda foram para seu primeiro disco solo All Things Must Pass como a famosa “My Sweet Lord”, por exemplo – mas, por alguma razão, George se sente rebaixado pelos amigos. 

A sensação só parece passar quando eles decidem abandonar o estúdio improvisado em um amplo set onde seria o especial de TV e vão para os estúdios da Apple, na Savile Row, isso já no segundo episódio.

Uma relação de amor… mas não essa que você está pensando

John Lennon, o enfant tèrrible dos Beatles e que foi, digamos, o fundador e líder da banda, parece ser, ironicamente, o mais distante ali. Brinca muito, é muito sarcástico como sempre deixou claro ser, mas parece estar em um outro momento, com outras prioridades, tanto que se atrasa frequentemente para os ensaios, está geralmente em outros compromissos. 

Aliás, foi justamente por conta de um desses atrasos que Paul tirou a frase do grande hit “Get Back” – cansado de esperar pelo amigo para começar o ensaio, ele se senta ao piano e começa a cantarolar “volte para onde pertence” (Get back to where you belong), o que diz bastante sobre o momento que ambos estavam passando. 

Por sinal, é tangível a ligação MÁGICA entre Paul e John e talvez por isso, por perceber que estavam distantes, que talvez estivessem por um fio, que transparece o esforço de Paul em tentar manter tudo no lugar. Não à toa, Lennon/McCartney é a dupla mais prolífica da música pop. A intimidade e admiração entre eles era evidente. 

Está em olhares, sorrisos, brincadeiras, toques e é claro, na música. 

É algo comovente e muito bonito de se ver, ainda mais quando nós, espectadores do futuro, lembramos das circunstâncias horríveis que nos roubaram o talento e sagacidade de Lennon, que levaram o melhor amigo de Paul. Mas eles também divergiam e especialmente naquela ocasião. Em uma conversa, John recrimina Paul por corrigir tanto os outros, sem permitir que ninguém o questione e Paul acaba confessando: “Você era o chefe aqui, mas eu tive que assumir isso nestes dois anos, e me custa muito.”

Uma relação de amor… agora sim, essa que você está pensando

A propósito, se tem uma coisa que este documentário lançou por terra foi o mito machista e misógino de que Yoko Ono acabou com os Beatles. 

Yoko está presente a todo momento, porém, extremamente discreta, mais preocupada em conversar com Linda McCartney, ler jornal, observar a interação entre os amigos, e até trabalhar em suas obras. Lembrando que, na época, Ono estava no auge de sua produção como artista plástica vanguardista e integrante do grupo militante Fluxxus. 

Ela só entra em cena quando participa das gritarias propostas por John e parece ter um ótimo relacionamento com todos os beatles, é educada, carinhosa e parece ser muito doce. 

Só lembrando que a permanência dela o tempo todo ali foi EXIGÊNCIA de John.

Ringo? O que dizer de Ringo? 

Ele é o cara do deixa disso. A melhor pessoa ali. A mais fácil de se lidar, a mais simpática, a mais leve, a que transita em todas as camadas, o cara que fuma um enquanto todo mundo está no maior arranca rabo, sorriso fácil, o tio mais divertido (os takes dele brincando com Heather, a filha de Linda McCartney, são puro ouro), o cara que prefere simplesmente fazer o que está sendo pedido para evitar conflito. 

Vale ressaltar os ótimos momentos dele sentado ao piano compondo a melodia de “Octopus ‘s Garden”, uma canção doce, onírica, quase infantil, que reflete bastante sua personalidade.

Por fim, mas não por menos importante, vale a menção da presença do virtuosíssimo Billie Preston, tecladista que tinha no currículo nomes como Little Richard, Sam Cooke, Ray Charles, Everly Brothers, Reverend James Cleveland e the Rolling Stones, emprestando um swing negro estadunidense de seus teclados à melancolia melódica dos quatro de Liverpool. 

Mas o fim também é parte da jornada 

Todos eles já estavam apontados para direções diferentes. Estavam muito abalados com a morte recente de  Brian Epstein, o empresário que tinha cuidado deles desde o começo, praticamente uma figura paterna; haviam voltado de um retiro espiritual na Índia que no final foi decepcionante, tinham acabado de lançar o álbum branco (The Beatles), onde haviam retomado o bom e velho rock ‘n roll depois das diversas experimentações da fase psicodélica e estavam praticamente há 3 anos sem se apresentar ao vivo. 

Nitidamente havia um grande ponto de interrogação sobre a continuidade da banda pairando no ar o tempo todo e isso se reflete em todas as interações. 

Desse material foi feito, sim, um documentário na época – Let It Be, que foi lançado em 1970, mas nunca passou por uma reedição e nem ganhou uma versão digital. Apesar de conter as cenas de brincadeiras e até a briga entre George e Paul, os próprios Beatles evitaram sua distribuição mais ampla porque não ficaram satisfeitos com o resultado. Ganharam um Oscar (melhor trilha sonora), que nem foram receber. 

O que o doc de agora nos dá é justamente todos os detalhes, sem cortes, de como a mágica acontecia. E o que pudemos constatar é que ela envolvia muito mais sangue, suor e lágrimas do que encantamento.

Quem não é fã pode achar o material longo e até enfadonho, pode ficar de saco cheio de ouvir os mesmos trechos de canções sendo repetidos infinitas vezes, achar piadas sem graça e interações sem sentido, mas é importante ressaltar que, por mais que pareça um trabalho glamouroso, fazer arte também exige compromisso, envolve ter que lidar com muita gente no processo, além de uma miríade de emoções, é um trabalho que também tem uma rotina e por vezes é bem enfadonha e dolorosa.

Mas quem está ali são os Beatles. 

Uma banda que, aceitem ou não, gostem ou não, influenciou a música e toda a noção de CULTURA POP que temos hoje. É um registro precioso, histórico, do legado da banda e um vislumbre da genialidade de seus integrantes, suas histórias, suas paixões, suas idiossincrasias, sua humanidade. 

No final, nos aproxima dos deuses e nos dá a sensação de que, na verdade, o sonho não acabou, mas vive dentro de nós.

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