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Um outro olhar sobre Fuga das Galinhas: holocausto, kibbutzim e comunismo

Aproveitando que o segundo filme da franquia chegou ao Netflix, fomos entender algumas analogias possíveis sobre a aparentemente inocente história destes galináceos rebeldes…

Por GABRIELA FRANCO


Logo que chegou às telas, há exatamente 23 anos, a animação “A Fuga das Galinhas”, produção da DreamWorks em parceria com o estúdio britânico Aardman Animations – do também ótimo “Wallace & Gromit” -, chamou atenção do público pela sua excelente qualidade. E algo mais…

Afinal, o longa produzido em stop motion também conquistou a audiência com uma história de aventura e humor que se passa em uma granja onde um grupo de galinhas revolucionárias planeja uma fuga para não acabar na panela de algum humano.

A animação acabou virando um cult moderno: muito bem recebida na ocasião de seu lançamento, conquistando e mantendo até hoje aqueles 97% de aprovação no Rotten Tomatoes, atualmente também faz parte da infância e das memórias emocionais de muitos millennials que nutrem pelo desenho um carinho especial.

Recentemente, a franquia ganhou uma aguardada e prometida sequência lançada diretamente para o streaming, na telinha do Netflix: “A Fuga das Galinhas: A Ameaça dos Nuggets”, uma produção original da plataforma de que promete animar esse final de ano e começo das férias escolares da criançada – e dos adultos, por que não?!

Neste novo filme, os personagens principais agora têm uma filha, Molly, que cresce no “santuário das galinhas” mas quer conhecer o mundo lá fora…e como todo jovem transgressor, Molly quebra algumas regras e foge. Para resgatá-la dos perigos do mundo dos humanos, o velho grupo de galinhas revolucionárias entra em ação novamente.

Indo além dos dados de bilheteria e das novas técnicas de animação (agora mesclando o stop motion com um quê digital, sem perder a graça do resultado final) a produção pode ser analisada com um pouco mais de profundidade.

Para além de uma mera granja…

Já assisti “A Fuga das Galinhas” diversas vezes. E sempre ficava em mim a sensação de que o filme fazia algum paralelo com o Holocausto. Da primeira vez, achei que estivesse exagerando. Ok, o filme era certamente sobre prisioneiros de guerra, e eu, como judia, talvez tivesse a tendência de enxergar o Holocausto em tudo o que se referisse ao tema.

É impossível ignorar a influência que “A Fuga das Galinhas” recebe de “Fugindo do Inferno” (The Great Escape, 1963), de John Sturges, sobre soldados aliados mantidos em campos de prisioneiros de guerra alemães. Algumas cenas icônicas do filme são diretamente parodiadas pelas galinhas, e até mesmo a trilha sonora é semelhante.

Mas, depois que analisei melhor alguns frames, composições de imagem, cores, elementos de cenário e comportamento das personagens, percebi que a comparação com o Holocausto faz sentido, sim.

No filme, os galinheiros parecem ter sido modelados em alusão aos abrigos dos Campos de Concentração, com fileiras e mais fileiras de casas de madeira idênticas, abarrotadas de galinhas. As torres de guarda ficam nas pontas das cerca de arame do galinheiro, exatamente como eram dispostas nos campos. Arame farpado, aliás, é um elemento muito distintivo e associado a campos de concentração – em uma granja real, não haveria necessidade de um arame desse tipo para manter galinhas confinadas.

As galinhas não eram apenas inimigas de seus captores – como era de se esperar em se tratando de uma analogia com prisioneiros de guerra –, mas eram percebidas com desdém, tratadas como uma “subclasse” usada para servir aos humanos que administravam a granja. Ao longo do filme, há várias outras composições imagéticas menores, mas que ainda evocam o Holocausto e campos de concentração.

A vilã, Sra. Tweedy, tem todinha uma série de comportamentos e até semelhança física com muitos soldados da SS e, às vezes, até do próprio Hitler. Os diversos closes em suas pesadas botas (até o modelo dos calçados é parecido com as usadas pela SS), os cães agressivos como animais de guarda e ora, vejam só: entre os rebeldes existe um velho piloto da Força Aérea Real Inglesa (lembrando que um dos estúdios é britânico) e o galo meio besta que ajuda a turma da fuga é uma espécie de “astro”…americano.

Lembrando que a animação não é a primeira obra a utilizar analogia entre diferentes espécies para representar os nazistas e suas vítimas – a história em quadrinhos “Maus”, de Art Spiegelman, retrata os nazistas como gatos e os judeus como ratos – que, aliás, era como os alemães se referiam aos judeus.

Talvez o mais revelador de tudo tenha sido a motivação da Sra. Tweedy em eliminar as galinhas. No início do filme, ela se livrava apenas das que não botaram mais ovos. Mas, ao longo do filme, no intuito de enriquecer, ela compra uma máquina de fazer tortas de frango cujo grande destaque é seu… forno!

Ou seja, de repente não se trata apenas de eliminar galinhas que não botem mais seus valiosos ovos, mas, sim, de eliminá-las por completo, lucrando com isso.

Existe, no entanto, a chama da esperança que nasce em Ginger e nas outras galinhas em lutar contra isso e, por isso, temos um final muito mais feliz do que o que a realidade nos trouxe. Afinal, ainda se trata de uma animação infanto-juvenil, por mais que possua camadas profundas e maduras que mereçam análise, ainda assim é importante trazer um certo alívio.

A Ameaça dos Nuggets: Kibbutz e redes sociais

Neste novo filme, “A Ameaça dos Nuggets”, temos logo de cara o debate sobre a distância geracional: o casal Rocky e Ginger tem a linda filhote Molly, que cresce na “ilha das galinhas” – um lugar paradisíaco onde todas as galinhas que fugiram da terrível granja opressora, no desenho anterior, agora vivem em paz, plantando e colhendo, com trabalho distribuído igualmente entre todos, o que – vejam só! – na hora me lembrou um kibbutz!

Os kibbutzim são comunas fundamentalmente agrícolas, que constituem cooperativas integrais, isto é, de produção e de consumo. Os meios de produção são de propriedade coletiva, o trabalho é organizado e administrado por comitês eleitos, todas as decisões mais importantes são tomadas em assembleia por voto majoritário. Foi a primeira e maior empreitada socialista bem sucedida na prática, em todo o mundo, até hoje. Ou seja, se “A Fuga das Galinhas” já tinha pecha de “Revolução dos Bichos”, uma espécie de “animação comunista”, agora com um kibbutz, isso fica bem evidente.

Na trama, Molly gosta de subir no alto das árvores e observar o mundo além da ilha. Até que ela avista uma série de carros adesivados com galinhas animadas e vê que eles estão se dirigindo a um lugar que promete criar galinhas muito felizes e decide fugir para, obviamente, ir até aquele lugar de aventuras pois a ilha das galinhas estava ficando entediante para ela.

CUIDADO COM OS SPOILERS

E daí que, chegando lá, trata-se de uma granja tecnológica, cheia de atrações, um verdadeiro parque de diversões que tem a premissa de criar “galinhas felizes” – simplesmente porque o estresse e a opressão deixavam suas carnes duras e sem gosto. Para isso, eles vendem a ideia de que é preciso estar feliz o tempo inteiro, mantém as galinhas sempre entretidas e utilizam nelas um colar que parece lhes tirar toda a personalidade e força de vontade, tornando-as verdadeiras zumbis, todas agindo exatamente da mesma forma…Qualquer semelhança com o poder zumbizante das redes sociais no celular que fica na palma da sua mão, é mera coincidência (ou não).

Outra analogia que pode ser feita é de que a turma da ilha das galinhas se mobiliza novamente para resgatar não só Molly da granja das Galinhas Felizes, mas todas as galinhas que lá estavam sob poder do colar e, novamente, da Sra. Tweety.

O que, pegando carona na analogia ao Holocausto do primeiro filme, pode, sim, ser associado às operações de resgate dos judeus etíopes em diáspora: a primeira delas aconteceu em 1985, no Sudão, e a segunda na própria Etiópia, em 1991.

A operação Moisés refere-se à evacuação secreta de judeus etíopes (conhecidos como os “Beta Israel”) que fugiram para o Sudão durante uma crise de fome, em 1984. Envolveu o transporte aéreo de 8.000 judeus etíopes do Sudão diretamente para Israel. Já a operação de 91 transportou 14.325 judeus etíopes para Israel em 36 horas.

Ambas as animações têm como cerne central a crítica ao capitalismo e o avanço dos processos selvagens de industrialização, que no final das contas também faziam parte da luta trabalhista dos habitantes dos kibbutzim nos anos iniciais da fundação de Israel.

Mas ainda há outras camadas não menos importantes na animação, tais como feminismo: a heroína do desenho é uma mulher e ela serve de inspiração para outras e até para a própria filha. E há também, claro, a porção que fala sobre ética e direito dos animais: não à toa, os diretores Nick Park & Peter Lord (do primeiro) e Sam Fell (do segundo escolheram contar a história através de uma fábula.

No final das contas, a franquia “Fuga das Galinhas” não foi feita para ser material de letramento educativo sobre o Holocausto, feminismo, veganismo ou comunismo. Ainda se trata de uma produção cultural bancada por Hollywood, cujo objetivo ainda é o lucro, sabemos muito bem.

Mas, como cidadãos progressistas, não podemos deixar de ver este tipo de produto como uma ferramenta extraordinária para apresentar às crianças e jovens ideias e aprendizados como o terror dos campos de concentração, resistência armada no Holocausto, feminismo, luta trabalhista e anseio por liberdade, paz e um mundo melhor, elementos definidores para todo humanista.

Vale a pena assistir a ambas as produções sob esse olhar. Porque tudo na vida pode ser mais do que apenas um bando de galinhas com os olhos arregalados.