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Sobre Flicts, Tuatha, Kiss e o tesão de ir em shows

Em 2023, o ano em que de fato retomei o hábito de ver espetáculos ao vivo pós-pandemia, descobri que a banda que era sinônimo de espetáculo resolveu “ressignificar” a palavra…

Por THIAGO CARDIM

Desde os meus áureos tempos de jornalista musical, tornei-me mais do que um apaixonado por música, mas também um aficionado por shows. Estar ali, diante do palco, compartilhando aqueles momentos únicos com a plateia ombro a ombro comigo, se tornou um momento que eu respeito demais – mesmo sabendo e encarando de frente os obrigatórios perrengues. Estar ali, ao vivo e cara a cara com os músicos, já me fez inclusive perder certo bode que eu tinha deste ou aquele artista que eu conhecia apenas de sua performance num disco gravado em estúdio. É, sem sombra de dúvidas, um dos meus rolês favoritos na vida.

E não tô falando só de apresentação imensa, de banda em estádio. E tampouco só de hypados astros internacionais em festivais instagramáveis. Amo ver aquela pequena banda independente brazuca tocando e dando tudo de si em um boteco para 100 e poucos gatos pingados. Amo ver um cantor desconhecido de um país absolutamente inesperado se apresentando pra uma galera absolutamente aleatória em um SESC da vida.

E justamente por isso, senti tanto quando a pandemia se abateu sobre nós.

Foram praticamente três anos sem ir a nenhum showzinho – e para alguém que colecionava lá uns bons 150 shows diferentes nos anos anteriores, ficar no zero a zero era de fato sofrido. Por isso fui participante tão presente das lives neste período de incertezas, dançando, pulando e gritando a plenos pulmões na sala da minha própria casa. Não era a mesma coisa, mas era o que eu tinha. De pagode a MPB, passando por axé e heavy metal, eu topava tudo. Conforme as apresentações públicas foram retornando, eu ainda fiquei muito receoso de retomar as atividades – mesmo vacinado, ainda tava cabreiro com toda aquela aglomeração. Os amigos arriscavam, mesmo que mascarados, me convidavam, e eu evitava a todo custo.

Até que agora, no comecinho de 2023, escolhi a dedo um show em São Paulo dos mineiros do Tuatha de Danann, banda que eu amo desde sempre, no topo das minhas bandas brasileiras favoritas. Um show intimista, quase experimental, mostrando os primeiros passos de seu novo disco. E foi uma delícia. Vimos, depois disso, alguns shows ao longo do ano, incluindo até mesmo um festival (pra tirar a zica DE VEZ) e a apresentação do grupo que eu mais tenho ouvido, de acordo com o Spotify, nos últimos quatro anos PELO MENOS.

Para encerrar o ano, pois então, me meti a fazer algumas estreias, todas de uma vez. Primeiríssimo show no Hangar 110, templo do punk rock em São Paulo. E a primeira vez que eu veria OUTRA das minhas bandas brasileiras do coração, o trio paulistano Flicts. Foi lindo, foi catártico, foi de lavar a alma (e o corpo, tamanha a quantidade de suor envolvida). Gritei até ficar sem voz e com dor de cabeça, pulei até ficar com as costas em frangalhos… E valeu a pena cada minuto.

Além do amor que sinto por ambas as bandas e por seus posicionamentos políticos certeiros e sem rodeios, o que os shows do Flicts (um grupo de punk rock) e do Tuatha (uma banda de folk metal com influências celtas) têm em comum? São SHOWS. Assim mesmo, em caixa alta.

As bandas subiram ao palco, ambas, com um tesão total e absoluto. Estavam lá tocando e se divertindo um bocado. Errando um pouco aqui ou ali, lidando com questões no palco, pequenos problemas com o equipamento, tanto faz. Entrega total e absoluta. Um improviso aqui ou ali, uma brincadeira entre os próprios músicos, uma provocação com o público. Isso é um show, de fato. Um momento parado no tempo, só seu, registro apenas daquela noite em especial. Um momento singular, que não se repete da mesma maneira numa outra performance, ainda que o setlist seja rigorosamente o mesmo. Porque o que estava acontecendo ali era, antes de tudo, uma situação única.

Por isso, no fim, eu amo ver ao vivo aquelas bandas que estão cagando pra tentar fazer um show cujas canções soem idênticas aos discos – se eu quisesse ouvir uma reprodução integral do álbum, eu tinha ficado em casa, dava o play no CD e já emendava com uma série no Netflix.

Por isso fiquei, por exemplo, tão frustrado com aquele show sem graça do Oasis no Rock in Rio de 2001. E, de alguma forma, também é a razão de eu ter ficado tão frustrado com o melancólico “fim” da carreira do Kiss – e seus eventuais planos para a “imortalidade” da banda.

Poisé, eu vou falar da Banda Beijo

No último dia 2 de dezembro, o quarteto mascarado Kiss fez então a sua última e derradeira apresentação da chamada “End of the Road Tour”, a turnê de despedida dos caras. Teve obviamente quem duvidasse pois, claro, o que não falta é banda de rock clássica prometendo a última série de shows antes da aposentadoria e, bingo, toma-lhe um retorno uns 2 anos depois. Mas, enfim, o fato é que aconteceu. E diante de um Madison Square Garden lotado, eles deram adeus. E anunciaram os próximos passos do Kiss enquanto franquia.

Muita gente (inclusive EU) especulava que, até pela idade, Gene Simmons e Paul Stanley sairiam de cena mas trariam alguém para assumir seus personagens – talvez até promovendo um ruidoso reality show para escolher os novos Demon e Starchild. Mas não foi isso o que rolou. Sim, o Kiss permanece vivo numa exposição especial, na vindoura cinebiografia pros cinemas, numa série animada… e também com seus avatares digitais.

Não, nada de novos integrantes assumindo os papéis do Kiss. Tal qual rolou com o ABBA, os quatro integrantes tiveram suas imagens registradas via captura de movimentos e agora poderão fazer apresentações eternamente, por vezes até em quatro ou cinco cidades ao mesmo tempo. “A banda merece continuar porque a banda é maior do que nós somos”, afirmou o Paul, no vídeo oficial de anúncio da iniciativa.

E eis que a banda que ajudou a criar o conceito do espetáculo ao vivo chega com uma ideia que é simplesmente o enterro desta ideia. Permanecem as luzes, a piromania, mas saem as pessoas. E é aí que a coisa toda fica sem graça até dizer chega. Porque eu tive a chance de ver o Kiss ao vivo. Cara, foi outra coisa.

Eu sempre digo que AQUILO era a real definição de espetáculo, com os efeitos, com o cara cuspindo fogo e babando sangue, o outro atirando fagulhas da ponta da guitarra, o fulano passando pela plateia pendurado numa tirolesa… Mas tudo isso era muito legal porque era GENTE fazendo. Ainda que eu estivesse vendo pequenininho, lá do fundão, eu sabia que era uma pessoa. E eu estava ali, respirando o mesmo ar que Gene, Paul, Eric e Tommy.

Agora, vai tudo acontecer em um telão. No máximo com um corpo de bailarinos pra fazer uma graça, sei lá. Mas todo o resto vai ser ali, digital, virtual. Virtualmente divertido, virtualmente satisfatório, virtualmente interessante. Só virtualmente.

Sim, eu concordo com o lendário Gastão Moreira, que diz que o Kiss nunca quis ser os Beatles, mas sim a Coca-Cola. Uma banda que sempre quis ser um produto. Uma franquia. Personagens de gibis. Que, vejam vocês, agora se tornam personagens de videogame. Ou quase isso.

Aliás, esta parada toda me lembra aquela verdadeira PRAGA das turnês de holograma. Aquela mesma, sobre a qual escrevi aqui. Só mudou de nome, porque agora é mais moderninho chamar de “avatar”. Mas dá no mesmo.

“Essa porra toda é, no fim das contas, uma forma de honrar a imagem de um artista e não o seu legado”, disse ninguém menos do que eu mesmo. “É o visual dele que importa e não a sua música. E isso é, de fato, o mais triste de tudo. Um holograma no palco é uma honraria mórbida, quase como se você colocasse um zumbi virtual pra percorrer o palco. Uma verdadeira homenagem seria trazer as histórias do músico ao palco, suas memórias. Seria reunir seus antigos parceiros para cantar suas canções, velhos colegas de banda, os cantores e cantoras diretamente influenciados por seu trabalho, seus herdeiros. Talvez umas imagens raras de arquivo nos telões entre uma faixa e outra, talvez com espaço para que os convidados possam contar passagens divertidas e emocionantes sobre o cara ou a mina que nos deixou”.

Neste caso do Kiss, a banda não morreu. Mas digamos que meio que se matou.

Eu JAMAIS pagaria para ver os avatares do Kiss num telão. Mas pagaria – e continuarei pagando – pra ver o Tuatha e o Flicts, quantas vezes for possível e necessário. Pra eles e pra mim.



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