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Entre as Estrelas: história de resistência dos povos indígenas

Jogo de plataforma desenvolvido pelo estúdio brasileiro Split mostra as irmãs Ari e Tai em sua busca de reencontrar e salvar seu povo, seu lugar e sua cultura.

Por THIAGO CARDIM


Seja no mundo dos quadrinhos, livros, filmes, séries ou mesmo dos games, o objetivo central acaba sempre sendo um só: contar boas histórias. E, de preferência, novas boas histórias. Que não sejam aquelas que todo mundo conta sempre. “Olhamos bastante o mercado internacional, especialmente os americanos, japoneses e europeus, e não conseguimos deixar de notar que os jogadores brasileiros se interessam bastante pelas histórias de samurais, Idade Média, vikings, etc”, diz Guille Hiertz, sócio da Split Studios.

“Pensamos que o mesmo poderia acontecer também, só que ao contrário. Ou seja, talvez eles também se interessem por nossas histórias, nosso povo, nossa terra. E, creio eu, se quisermos competir internacionalmente, precisamos primeiro (ou também) ser especialistas em contar as histórias do… Brasil”.


Bingo. Eis que nascia aí o jogo “Entre as Estrelas”, recentemente custeado via financiamento coletivo. “São muitas histórias incríveis não contadas, formas de ser e viver, lendas e mitos que o mundo quase desconhece. É um terreno muito fértil e praticamente inexplorado. Te digo que é prejuízo não vender o Brasil lá fora. Ao entender isso, a escolha dos ingredientes que formariam o projeto foi orgânica e natural”.

“Entre as Estrelas” é um jogo 2D full animation de plataforma e aventura, com combate e resolução de puzzles, no melhor modelo de jogos como “Ori and the Blind Forest”, “Limbo” e “Valiant Hearts: The Great War”. O jogo apresenta uma história inspirada em conflitos reais existentes no centro-oeste do Brasil e na força e resistência dos povos indígenas da região. Apesar de uma trama 100% ficcional e com elementos da espiritualidade indígena, ela reflete o contexto de muitas vidas e famílias brasileiras que sofrem violências e que quase nunca ganham as capas de jornais.

O jogo conta a história das irmãs Tai e Ari, separadas após um violento ataque à comunidade indígena onde mora. Ao descobrir que tem uma inesperada conexão com um espírito da natureza, o Encantado, a pequena Ari é lançada a uma jornada no mundo espiritual – e se quiser reencontrar a irmã, precisará aprimorar sua conexão com Encantado. Enquanto isso, Tai, sem saber do paradeiro da irmã, parte em busca de Ari, com a certeza de que ela permanece viva, mas enfrentando adversários BEM mais reais, como os grileiros e sua trilha de destruição. 

“Queremos dar luz e entendimento para os conflitos reais do Brasil, como as disputas de terras, devastação da natureza e ataques às populações indígenas, em curso há mais de 500 anos no país”, explica Hiertz, que também é diretor do jogo.

Depois de terem trabalhado na animação de séries gigantescas como “Rick and Morty”, “Hello Kitty” e a nossa nacional “Turma da Mônica”, a equipe da Split achou natural migrar com sua experiência para o mundo dos games. Fizeram alguns trabalhos para o Cartoon Network e até mesmo ficaram responsáveis pela adaptação de “O Menino e o Mundo”, de Alê Abreu, indicado ao Oscar em 2016.

O jogo é dividido em capítulos que exploram duas tramas paralelas, com duas personagens jogáveis diferentes. Na parte que diz respeito a Ari, o Encantando utiliza os poderes sobrenaturais inexplorados da heroína para assumir a forma de diferentes animais, sendo que cada animal desbloqueia e concede uma habilidade nova a ela. Já na fase de Tai, ela irá combater as incursões ilegais na região pantaneira ao seu modo, explorando diferentes aspectos geográficos do Pantanal, sejam seus campos, matas, pequenas vilas e comunidades, fazendas de gado e os acampamentos dos grileiros.

“No começo, nossa equipe mergulhou fundo na pesquisa acadêmica e de imagens. Lemos o que havia disponível para ler na internet e nos livros do Darcy Ribeiro sobre o povo Kadiwéu”, explica Hiertz. E quando estavam convictos sobre o universo que escolheram, começaram a procurar, em diversos lugares, profissionais audiovisuais que tivessem a vivência, experiência e paciência para construir a história e gameplay.

“Foi nesse momento que encontramos a Graciela Guarani, a Dani Jorge e a Nicolle Ansay, que trouxeram um conhecimento enorme e, com elas, a possibilidade de falarmos também sobre o povo Guarani Kaiowá”, revela. “Inclusive, agora temos a possibilidade de localizar o game em Guarani. Ainda não temos certeza se conseguiremos localizar em Kadiwéu, vai depender do quanto conseguirmos arrecadar na campanha e também encontrarmos profissionais que possam nos fornecer esse serviço. Hoje, podemos dizer que quase metade da nossa equipe confirmada é composta por profissionais de mercado oriundos dos povos originários”.

Embora tenham batido a meta principal da campanha e financiado a versão Alpha do “Entre as Estrelas”, via Catarse, com quase 3 mil apoios e quase R$ 270 mil arrecadados (o que representa mais de R$ 40 mil convertidos para instituições indígenas), eles não quiseram parar ali – e, para poder contar a história completa das duas irmãs, com todas as aventuras e fases planejadas anteriormente, criaram uma segunda campanha, de late pledge, para todo mundo que quiser participar ter uma nova chance.

Agora, além do jogo, impossível deixar de perguntar, ainda mais para uma produtora especializada em desenhos animados – um jogo com o objetivo de trazer o jogador numa imersão praticamente dentro de um desenho animado não poderia, no fim, gerar um desenho animado derivado também? “Não pensamos nisso ao criar o projeto e ainda não tenho certeza se isso faz sentido”, confessa Hiertz.

E ele explica o motivo: “Nós queremos elevar ao limite a mistura entre animação high end (aquela que você veria no seu filme japonês) e gameplay. Como queremos dar muita jogabilidade e modos diferentes, nosso desafio será mesclar as duas coisas de forma que o jogador perceba que estamos fazendo isso, ao mesmo tempo em que pensam: uau, ninguém fez isso antes. Por fim, ao final do jogo, queremos que o jogador curta não só os combos e a movimentação, mas também seja profundamente impactado com a nossa história, uma sensação que você teria ao maratonar uma trilogia de filmes”.

Mas, no futuro, certamente que sim. “Até pelo tamanho do universo que criamos. Certamente e infelizmente, teremos de deixar de fora alguns personagens e quests… mas quem sabe numa futura DLC ou em filmes?”.

“Entre as Estrelas” ainda não tem previsão de lançamento, mas a expectativa é que jogo seja lançado para Playstation, Xbox, Nintendo Switch e PC (via Steam).

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