
Se você não viu Pecadores ainda, tá perdendo…
Um dos maiores (e mais inesperados) sucessos cinematográficos do ano, combinando terror, música e crítica social, é também um dos melhores filmes do ano, disparado
Por THIAGO CARDIM
Quando um gigante como a Disney se mete a lançar um de seus filmes – sejam eles da Marvel, Star Wars, Pixar, tanto faz – é provável que a negociação com as salas de exibição seja tão agressiva quanto a sua campanha de marketing. O que significa, na prática, que o filme blockbuster da vez vai ocupar a maior parte dos horários, deixando outras possibilidades de filmes, pra diversificar o cardápio do espectador, de fora do circuito.
Seja na semana de estreia, seja na semana posterior, tanto faz, isso sempre vai atrapalhar. E a treta não acontece só com filmes pequenos, alternativos, “de arte” ou mesmo os nossos brasileiros. Filmes americanos de tamanho menor também sofrem ante o poderio do Mickey Mouse.
Foi exatamente o que aconteceu, aqui no Brasil, com Pecadores – que aportou nas nossas telonas dia 17 de abril e, menos de duas semanas depois, já perdeu grande parte de seu espaço para o vagalhão conhecido como Thunderbolts*. Isso faria, em situações normais de temperatura e pressão, que a produção dirigida pelo mesmo Ryan Coogler dos filmes do Pantera Negra se perdesse na enxurrada de lançamentos genéricos que inundam nossos cinemas todos as semanas.
Mas a combinação poderosa de terror, música e crítica social acabou abraçada tanto pela crítica quanto pelo público, fazendo o boca a boca se tornar essencial para o resultado final tanto aqui quanto no mundo.
No caso, o tal resultado foi uma aclamação quase unânime, com 98% de aprovação no Rotten Tomatoes e nota “A” do CinemaScore, sendo o primeiro filme de terror em muito tempo a alcançar essa avaliação. Além disso, com um orçamento estimado entre US$ 90 e 100 milhões, Pecadores arrecadou aproximadamente US$ 358,5 milhões mundialmente, tornando-se a sexta maior bilheteria de um filme de terror na história do cinema. O desempenho superou expectativas, especialmente considerando sua classificação indicativa para maiores de idade. Tudo, diga-se, mais do que merecido.
E agora que a produção chega ao ambiente digital, estando disponível para aluguel no Google Play/YouTube, AppleTV, Prime Video e por aí vai, fica aqui a recomendação expressa e absoluta para que você veja UM DOS MELHORES FILMES DO ANO.
Assim mesmo, em Caps Lock, sem exagero algum.
E te explico os motivos.

Um novo Drink no Inferno? Não. Diferente. E melhor.
Pela inesperada presença dos vampiros, muita gente inevitavelmente correu pra comparar Pecadores com Um Drink no Inferno, filme de 1996 dirigido por Robert Rodriguez no qual uma dupla de irmãos criminosos (vivida por George Clooney e Quentin Tarantino) faz uma família de refém e acaba cruzando o caminho de um bando de sugadores de sangue.
Mas a comparação não poderia estar mais equivocada.
Porque Um Drink no Inferno não é um filme sobre vampiros, mas sim sobre família. Diferentes e disfuncionais laços familiares. Da mesma forma, Pecadores não é um filme sobre vampiros. E sim sobre… blues (mas não só). Se você quiser comparar pra valer, Pecadores conversa muito mais com A Encruzilhada (1986) – pela abordagem mais “ampla” da relação do blues com o sobrenatural, meio que fazendo, cada um a seu jeito, uma releitura das lendas de pactos satânicos que envolvem músicos como o lendário Robert Johnson, por exemplo.
Porque, como disse o próprio diretor, Pecadores “é mais um filme sobre a música americana do que qualquer outra coisa”. Um filme sobre a música e sobre o legado da ancestralidade que ela pode carregar por diferentes gerações.
Ambientado em 1932, no Delta do Mississippi, Pecadores se passa ao longo de um dia e uma noite, centrando-se nos gêmeos Moore, Elijah “Smoke” e Elias “Stack” (ambos interpretados por Michael B. Jordan). Eles são veteranos da Primeira Guerra Mundial que retornam para casa, após um período trabalhando para nomes pouco louváveis em Chicago (Al Capone te diz algo?).
A era da Lei Seca está chegando ao fim, e os irmãos retornam à sua cidade natal para recomeçar a vida, planejando abrir uma clube de blues naquela mesma noite, em um velho celeiro. Então, eles recrutam seu jovem primo Sammie (o estreante Miles Caton), filho de um pastor e que anseia se tornar músico de blues, para o entretenimento da noite, bem como um elenco de personagens locais para animar a festa (ou trabalhar nela, dependendo do ponto de vista). Mas um determinado irlandês vai plantar a semente pra transformar a ferveção em algo bem mais sombrio…
Além de incorporar obviamente elementos do blues como expressão de liberdade e identidade, Pecadores também mergulha a fundo na espiritualidade afro-americana (representada principalmente pela figura da misteriosa e poderosa Annie, interpretada de maneira magistral por Wunmi Mosaku). O filme aborda ainda temas como ódio racial e resistência cultural, utilizando o terror como metáfora para as opressões enfrentadas pela comunidade negra. Afinal, como diz o velho bluesman vivido por Delroy Lindo: “as pessoas gostam do blues, mas não das pessoas que fazem o blues”.
Pois é.
Apesar de Michael B. Jordan brilhar mais uma vez (ou, neste caso, DUAS vezes), a grande graça de Pecadores é justamente o quanto o seu elenco funciona e trabalha integradamente em favor da história. A presença de Hailee Steinfeld (a Gaviã Arqueira), por exemplo, não é no papel de uma diva e tampouco de uma donzela em perigo. A conexão dela com um dos irmãos Moore faz tanto sentido quanto o papel que ela desempenha… bom, que ela desempenha DEPOIS, pra evitar spoilers aqui. E a definição de “monstruosidade”, que passa a fazer real sentido lá pelo final do filme, é o mais puro e lamentável retrato do que são os EUA de Trump nos dias atuais.
Apesar da dureza gore de algumas cenas, em especial aquelas que se desenrolam lá pela segunda metade do filme, Pecadores é um filme que sabe ser absolutamente sensível mesmo em seus momentos mais espinhosos, o que é um baita elogio para um filme de terror. Mais do que isso, consegue ser poético, até: a sequência da dança, que mistura diferentes referências da cultura negra em diferentes momentos do tempo e espaço, em suas muitas sonoridades e coreografias, é de uma beleza que há muito eu não via numa telona de cinema, vou confessar.
E aquela participação especial… aquela, na cena pós-créditos (que, sim, existe e vale DEMAIS a espera), que coisa linda, tanto dentro quanto fora do filme.
Ver um filme dito de terror, com a presença de vampiros, e sair com a alma flutuando e com o coração, de alguma forma, bastante aquecido, não é uma tarefa simples. Mas Pecadores consegue cumpri-la com maestria.

Um pouco de história fora das telonas
A concepção de Pecadores teve início em janeiro de 2024, quando Coogler começou a desenvolver o projeto através de sua produtora, Proximity Media, que fundou ao lado da esposa Zinzi – e marca a QUINTA colaboração de Michael B. Jordan com Coogler. Numa entrevista para a revista EBONY, o cineasta inclusive deixou claríssimo que este filme é um projeto muito pessoal para ele, levando-o a se afastar de qualquer coisa relacionada aos chamados “filmes de franquia”.
O projeto foi tão pessoal que, vejam vocês, Coogler também negociou com a Warner Bros. para que os direitos de Pecadores sejam revertidos para ele depois de 25 anos, o tipo de negociação hoje raríssima no mundinho hollywoodiano do cinema.
Então, justamente por isso, ele quis entregar algo “original e único” ao público. “Eu queria que o filme parecesse uma refeição completa: aperitivos, entradas, pratos principais e sobremesas, eu queria tudo ali”, explicou. “Eu queria que fosse algo holístico e completo. Foi assim que me perguntaram sobre o filme. Essa sempre foi a minha intenção”. Portanto, pelo menos por agora, esqueçam qualquer discussão a respeito de uma eventual sequência.
“Uma grande inspiração para o filme é um romance chamado A Hora do Vampiro [de Stephen King]. O que acontece quando uma cidade que tem seus próprios problemas, muitos personagens interessantes, encontram uma força da natureza mitológica e começam a influenciar a cidade?”, explicou Coogler em entrevista coletiva na qual apresentou o filme a jornalistas de todo o mundo.
Nascido em 1986, em Oakland, Califórnia, Ryan Coogler é conhecido por obras que exploram questões raciais e sociais. Seu primeiro longa, Fruitvale Station (2013), retrata a morte de um jovem negro pela polícia. Posteriormente, dirigiu Creed (2015) e Pantera Negra (2018), consolidando-se como um dos cineastas mais influentes de sua geração.
A ideia de Pecadores surgiu na cabeça dele lá por volta de 2022 – depois de viajar o mundo divulgando Pantera Negra: Wakanda para Sempre, encarando uma pegada bastante emocional e desgastante pela perda de Chadwick Boseman, Coogler passou um tempo em casa com a família relaxando. “Eu ouvia blues sem parar. Tipo, não me cansava”, lembra ele, em entrevista pra revista Variety. A música lembrava de seu falecido tio James, que era do Mississippi. “O blues era como a vida dele. Ele não era músico, mas era ouvinte. Foi assim que conheci este universo. Eu ouvia porque sentia falta dele; ouvia para tentar trazê-lo de volta à vida, por assim dizer.”
Um dia, tocou uma música chamada “Wang Dang Doodle”, do blueseiro Howlin’ Wolf. A letra trata de um grupo de pessoas em uma pequena comunidade dando uma festa. “Todos eles têm apelidos que insinuam que são gângsteres e ele está dizendo que essa festa vai ser uma loucura”. O cineasta lembra que sua família também dava muitas festas… e então veio o primeiro insight. “Eu pensei: ‘Ah, não seria legal se eu fizesse um filme ambientado ao longo de um dia, onde esse grupo de pessoas e todos que se encontram com elas são perigosos, mas no fim eles encontram algo mais perigoso do que jamais poderiam imaginar.”
Aí, ele resolveu cravar a história no Mississippi dos anos 1930 – e como a primeira coisa que vem à mente, ao seu pensar nos EUA, é a segregação, ficou claro que existia uma ideia de filme ali. “Não apenas um filme, mas um filme para os tempos que vivemos agora”.