Demolidor e a Simpatia pelo Diabo
Demolidor, personagem criado em 1964 por Stan Lee e Bill Everett para a Marvel, é o meu herói favorito. E isso tem tudo a ver com o fato de eu estudar religiões. Explico.
Por GABRIELA FRANCO
Daredevil (o Demolidor, na tradução pro português) é um dos super-heróis mais singulares da Marvel, e nasceu em um período de grande efervescência criativa, os loucos anos 1960, nos quais A Casa das Ideias estava testando novos formatos, novos personagens e novos talentos.
Sua estreia foi em abril de 1964, na revista Daredevil #1, com roteiro de Stan Lee e arte de Bill Everett. O personagem surgiu no auge da Era de Prata dos quadrinhos, além de auge da Guerra Fria, e o mood da época era uma mistura de otimismo tecnológico, medo nuclear e profunda contestação social.
E foi exatamente nesse caldeirão de sentimentos e contradições que a Marvel decidiu consolidar sua identidade editorial. Afastando-se dos arquétipos superpoderosos do passado, a editora apostou em uma nova linguagem de humanidade e vulnerabilidade para seus heróis. Se a editora concorrente apostava suas fichas nos superseres cósmicos e indefectíveis, a estratégia da Marvel foi criar personagens mais falíveis, com dilemas pessoais e problemas cotidianos, em contraste direto com a vida perfeita propagada pelo American Way of Life… e pelos heróis da DC.
E foi assim que nasceram os vigilantes urbanos, os chamados “heróis de rua”, justiceiros que eram gente como a gente: proletários, com problemas de aluguel, que perdiam o ônibus e tinham vidas amorosas desastrosas. Entre eles, o jovem e atribulado Homem-Aranha e o advogado cego e atormentado Matt Murdock, o Demolidor.

A história do capeta em forma de guri… Ou quase isso.
Matthew se tornou um vigilante após um trágico acidente em sua infância. Aos nove anos, o bom menino católico irlandês, ao salvar um pedestre de ser atropelado por um caminhão, foi atingido pelo líquido radioativo proveniente da carga do veículo (lembrem-se: radiação era o grande assunto do momento) e acabou ficando cego.
Porém, o mesmo acidente fez com que seus outros sentidos – audição, tato, olfato e paladar – fossem amplificados a níveis sobrehumanos, e ele desenvolveu um sentido de “radar” (sim, como o dos morcegos) que lhe permite perceber o ambiente perfeitamente. Inspirado pelo trágico assassinato de seu pai boxeador, Jack Murdock (que foi morto por se recusar a trapacear em uma luta a mando da máfia), Matt usou suas novas habilidades e o treinamento em artes marciais que aprendeu com o mestre (também cego) Stick, nas ruas.
Nascido e criado na Cozinha do Inferno (Hell’s Kitchen), um dos bairros mais violentos e menos charmosos de Nova York, Matt reforça a ideia de “cria” das ruas e dá, literalmente, sua vida para fazer justiça aos menos favorecidos e marginalizados de seu bairro. Assim ele se tornou o Homem Sem Medo, combatendo o crime nos tribunais durante o dia, sob a égide da lei, mas burlando o sistema e fazendo justiça com as próprias mãos , vestido de diabo à noite. A justiça é cega, pero no mucho, afinal.
::: ESCUTE AQUI: Os 60 anos do Demolidor | Repassando Demolidor: O Homem Sem Medo

O Diabo veste Collant
Mas por que o diabo? Vale dizer que aqui a escolha do NOME veio antes do traje, que foi uma consequência. Quando Lee e Everett criaram o personagem, o ponto de partida não foi a figura do diabo em si: eles nem pensaram nisso, mas sim no nome “Daredevil”, que já existia antes. Era, isso sim, o título de um herói pulp dos anos 40, de outra editora, e acabou sendo reaproveitado pela Marvel simplesmente porque soava bem, tinha força e estava disponível para compra. 😉
Em inglês, “daredevil” significa literalmente “demônio desafiador”, ou seja, alguém corajoso a ponto de desafiar o perigo, o medo e a própria morte. A partir desse conceito, os criadores construíram a ideia de um homem comum capaz de enfrentar o impossível: um cego que virava super-herói.
Seu primeiro uniforme, portanto, não tinha nada de diabólico. Era amarelo e vermelho e provavelmente brilhante (#deusmelivre), já que era feito por Matt com o tecido das roupas de boxe do pai.
A personalidade do herói também era meio fanfarrona, leve como a de um artista circense, nada parecida com a do herói dramático e pesado que conhecemos hoje.
A estética inspirada no cramulhão só veio depois, quando o desenhista Wally Wood assumiu o título em 1965 e redesenhou completamente o visual do herói. Foi ele quem criou o traje todo vermelho, o ícone “DD” no peito (que antes era um só) e deu ao personagem o ar urbano, misterioso e provocador que combinava com o nome.
Foi então que o Demolidor passou a ter essa identidade visual marcante, quase como um “demônio da justiça” que ronda os becos da Cozinha do Inferno. Tudo isso vindo do universo do terror, do qual Wood era egresso e veterano, já que vinha da EC Comics, editora pródiga em publicações de ficção científica e terror.
::: OUTRO DA GABI: Como a Elektra mudou a minha vida

O cara mais underground que eu conheço é o Diabo
E agora a grande ironia (ou ambivalência) apaixonante no herói: Matt Murdock é filho de imigrantes irlandeses e um católico fervoroso que se veste de diabo para combater o “pecado” daqueles que deveriam fazer o bem mas escolhem a corrupção.
Todo esse background veio anos depois, mais precisamente nos anos 1980 quando a revista do Demolidor, que já ia mal das pernas na época, foi entregue, como último recurso, a um roteirista novato chamado Frank Miller.
Foi ele quem percebeu o potencial desse contraste e o transformou no eixo central da mitologia do personagem. Sob a batuta de Miller, o Demolidor virou um herói atormentado pela culpa, pela fé e pela tentação, alguém que literalmente veste o símbolo do mal enquanto tenta fazer o bem. Posteriormente, roteiristas como Brian Michael Bendis e Ed Brubaker ampliaram esse dilema, explorando Matt Murdock como um homem dividido entre a ordem e o caos, a fé e a violência, Deus e o Diabo, dando muito mais riqueza, tridimensionalidade e humanidade ao personagem, fazendo dele o herói apaixonante que conhecemos hoje.
::: LEIA AQUI: O que achamos da nova série do Demolidor no Disney+?
—
Mas vamos falar sobre a simbologia de um demônio que luta por justiça.
E que crê em Deus.
Na cultura ocidental, principalmente na cristã, o Diabo é visto não apenas como o inimigo de Deus, mas também como aquele que desafia sua autoridade. É o rebelde, o desobediente, o que se recusa a aceitar um destino imposto ou o status quo. Foi o anjo que ousou questionar a Deus e por isso foi expulso. Preferiu “reinar no inferno do que servir no céu”.
O traje do Demolidor evoca justamente essa dupla natureza: ele age à margem da lei, punindo aqueles que de alguma forma escapam da justiça terrena, que encontram brechas na lei e se safam. Assim ele assume para si um papel que fica entre o sagrado e o profano.
Já na tradição judaica, no entanto, a figura do diabo cristão como epítome do mal nem existe, mas o nome hebraico SATAN, assumido pelo cristianismo como sendo uma das alcunhas do diabo, na verdade é um título, como o de um promotor de justiça.
Quer dizer ACUSADOR, aquele que expõe as falhas do réu em um tribunal. Essa figura se aproxima da profissão de Matt, que é advogado, praticamente um promotor do inferno moral que ele mesmo enfrenta. Ao vestir o traje, Murdock encarna essa ideia: ele se torna o acusador dos pecados ocultos do sistema e dos criminosos. Mas, fazendo isso, ele mesmo se torna um pecador.
Além disso, o vermelho do uniforme remete ao sangue inocente que é vertido pela injustiça, mas também à fúria violenta e à paixão, sentimentos que recorrentemente atravessam o herói. Matt Murdock, o homem por trás da máscara, utiliza a iconografia do mal para incutir medo e culpa nos criminosos, algo semelhante ao que o Batman faz com sua figura sombria; ele o faz como sendo finalmente “a justiça divina” alcançando os malfeitores. Não é à toa que muitos o chamam de “o Batman da Marvel”.
(Há quem diga, no entanto, que é o Cavaleiro da Lua, mas enfim, o assunto não é esse, rs)

Há no entanto um ponto crucial: Matt é católico fervoroso. E é justamente daí que nasce o seu eterno conflito interno. De um lado, ele acredita na justiça divina; de outro, não consegue se conter diante da injustiça humana. Como vigilante, ele se coloca num lugar perigoso, quase blasfemo, ao agir como juiz e executor. Assim, o uniforme torna-se o espelho dessa contradição: um símbolo de sua fé e de sua culpa, ao mesmo tempo.
Essa dualidade também se manifesta ainda na relação entre o ego e o alter ego do herói: de dia, ele é um advogado que defende a justiça institucional sob a luz da lei. À noite, um agente que aplica a própria justiça, nas sombras. A lei representa a ordem divina e a humana; o traje, a sua transgressão. Matt vive, assim, entre dois mundos: o da justiça, da luz e da fé; e o da injustiça, da violência e das trevas.
No fim, Matt, o Demolidor, não bate só nos “bandidos”. Ele encara a corrupção do sistema, a sujeira que quase ninguém vê e ele, sendo cego, consegue enxergar.
Matt está naquele mundo em que nem sempre conseguimos diferenciar os mocinhos e os bandidos, como costuma ser simples nas histórias infantis. Trata-se definitivamente de uma HQ pra adultos, sobre um paladino trágico carregando um fardo divino (jogadores de Dungeons & Dragons possivelmente vão se lembrar disso), mas fazendo o trabalho sujo, aquele que só o diabo faria.
O Demolidor é a síntese perfeita entre fé, dor e justiça. Um homem que se veste de diabo para lutar contra os verdadeiros demônios do mundo real: a corrupção, o crime e a impunidade. Afinal, não há maldade maior do que aquela que se veste de bondade.
Já que estamos no inferno, pois que abracemos o capeta.
E por isso, ele é meu herói preferido.
—
::: COMPRE AQUI e complete sua coleção do Homem Sem Medo
Fabian Fontoura
Gabriela, parabéns: que artigo incrível, uma declaração de amor e tanto a esse personagem que também é um dos meus favoritos!! Sempre que for tentar explicar para alguém o porque gosto tanto do diabão, indicarei esta leitura!