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Ménage: como sexo não ia rolar, eles fizeram gibi

Junte um anarquista escatológico, uma feminista libertina e um monge libidinoso e você tem um projeto inesperado e surpreendente – que acaba de chegar ao segundo volume

Por THIAGO CARDIM

Era uma vez uma live. No caso, com a Germana Viana e o Marcatti, dois quadrinistas que se conhecem faz tempo e que já cruzaram uns pelos trabalhos dos outros. Foi meio na loucura, de última hora. “Em algum momento me bateu a vontade de comentar com ele que a gente deveria fazer um gibi junto”, conta a Germana, em papo exclusivo com o Gibizilla. “E que seria ducaralho se Laudo participasse também!”. O Laudo, no caso, é o Laudo Ferreira, também quadrinista. E que estava vendo a live. E que topou na hora, pimba, assim ao vivo.

“Na mesma noite, já tínhamos uma pré-ideia da edição, acredito que a coisa do tema e principalmente o nome – Ménage – proposto pelo Marcatti e que teve aceitação unânime, pois era perfeito”, explica Laudo. O resultado é um gibi periódico e baratinho, com liberdade narrativa total, sem amarras, juntando três estilos bem distintos e transformando-os na essência da revista. A cada edição, cada um irá desenvolver uma pequena HQ a partir de um tema comum. Na edição de estreia, financiada com sucesso no Catarse, o tema era ARMÁRIO. Agora, a campanha do número 2 foi oficialmente lançada na CCXP, pulando de 24 para 36 páginas, e com o tema LIVRO.

“Nós três temos linhas de trabalho bem diferentes e sabemos muito bem o que queremos e pretendemos com ele”, explica Laudo, quando pergunto se em nenhum momento pensaram em fazer histórias em CONJUNTO, misturando os três, ao invés de cada um desenvolver a sua. “A princípio a ideia é cada um na individualidade dentro d’uma ‘coletividade’, funciona melhor, há um baita respeito mútuo e ponto final”. Germana completa dizendo que eles até pensaram nisso, mas ver no que resultariam as diferenças tanto de arte quanto de roteiro a partir de um tema comum pareceu um desafio interessante…

Talvez a definição mais deliciosa de todas, no entanto, fique a cargo do Marcatti, que afirma que seu entusiasmo durante o processo de produção do número 1 fez com que enxergasse Ménage como a união de três ímpares que se admiram, se respeitam e se gostam muito. “A gente sempre conversou como se fossemos amigos desde a infância. Entre nós, temos um amor solto e leve que nos torna levianos a ponto de produzir uma revista que, em sã consciência, editor algum pensaria em juntar. Acho que o resultado final mostra nossa cumplicidade a partir de nossas diferenças”.

A liberdade foi tamanha que mesmo os temas de cada edição não deveriam, de forma alguma, ser limitadores. “Decidimos que as palavras escolhidas seriam objetos aleatórios e não conceitos ou sentimentos! Achamos que fica mais divertido e quem quiser sair com algo filosófico a partir da palavra sai e quem quiser só fazer uma besteirinha divertida também faz”, conta Germana. O Marcatti concorda, ao dizer que o que ajuda a tornar fascinante ter um tema comum é o quanto ele não tem origem planejada ou substancialidade suficientes para castrar nossa libido. “Para você ter uma ideia, o tema do número 3 será SACA-ROLHA… e nós três já bolamos nossas HQs”.

Mas como funciona o trabalho a seis mãos?

Afinal, o trio chega a ver algo do trabalho um do outro, se ajudam, ou deixam como totalmente surpresa a entrega final? “Não existe exatamente uma metodologia formal nesse tipo de coisa, e acho que isso é uma das coisas que mais amo no nosso Ménage”, explica Germana. “É uma espécie de triunvirato anarquista onde cada um faz o que quer e dá super certo porque os três têm responsabilidade, respeito, carinho e tesão pelo que estamos fazendo”. Ela revela ainda que, na edição inaugural, os dois sabiam de sua história antes mesmo que ela escrevesse o roteiro – mas na segunda, ela foi mais misteriosa.

“Eventualmente vamos mostrando uma ou outra coisa do que estamos fazendo, mas sem palpites, numas de mostrar mesmo. Mas por exemplo, nessa primeira edição, eu e a Germana compartilhamos a história, o enredo, o Marcatti não, pois foi construindo enquanto ia fazendo”, diz o Laudo. Marcatti afirma ainda que os três ficam, claro, assanhados em compartilhar entre eles quando a história brota ou vai, como ele mesmo descreve, enrijecendo. “Mas sempre tomando o cuidado natural para não ‘entregar o ouro’. O ego de um artista é sempre muito maior que sua obra. Necessitamos da opinião um do outro, sim, mas sobre a história completa”.

Falando sobre distribuição…

Ao ver o tamanho, o formato e, principalmente, o valor de Ménage, meu instinto de jornalista velho me faz pensar imediatamente em ver este gibi ali, sendo vendido em banca. Os planos deles, na verdade, são bem diferentes. “Não somos nem desejamos ser ‘empreendedores’. Nosso objetivo primeiro é publicar”, faz questão de ressaltar Marcatti. “Em seguida, procuramos viabilizar para, só então, monetizar. Pode parecer equivocado para os padrões atuais, mas o caminho inverso é broxante”. Ele deixa claro que a maior virtude de produzir de forma independente é não se amarrar a planejamentos de longo prazo. “Hoje, a nossa janela de oportunidade é o financiamento coletivo. Amanhã, poderá ser vender cópias xerox no Largo da Concórdia…”.

Não é de São Paulo? Então joga no Google pra sacar qual é, hahaha.

O Laudo relembra, no entanto, que o gibi tem uma parte da tiragem distribuída em comics shops e algumas bancas de São Paulo, na capital. A ideia, por enquanto, é manter essa “pré-venda” via Catarse. “Por conta de distribuição, banca é um lance meio inviável para atingir leitores que não sejam de nossa cidade, e isso é uma das coisas que o financiamento coletivo e a internet ajudam a driblar! Então, pensar APENAS em banca, quando existem outras maneiras de fazer o gibi chegar ao leitor, é limitar demais as opções”, amarra a Germana.

Agora, se estamos falando de um gibi P&B e que, claro, fala total e abertamente sobre sexo sem muitas amarras, não dá pra evitar pensar num cara como Carlos Zéfiro. Mas embora nem a Germana (“Zéfiro me inspirou a fazer Os Catecismos de Mama Jellybean, mas sou mais desavergonhada que ele e não usei pseudônimo”) e nem o Laudo (“Vai passando por caras como Pasolini e Jodorowsky, até obras mais alternativas antigas de diretores como Ken Russel, Mario Bava, meu querido Mojica, entre tantos outros. Isso me fez e faz muito a cabeça”) o considerem referência direta, Marcatti enxerga alguma conexão com o proibidão que era o terror da família brasileira.

“Carlos Zéfiro é definitivamente o ‘pai’ do quadrinho independente. Mesmo com a libido a 200% como adolescente que eu era na época, o trabalho de Zéfiro não me era sexualmente estimulante”, relembra. “Mas o formato, a sofrível qualidade de impressão, o cheiro e, principalmente, o modo como era difícil comprar suas revistas formam o meu insubstituível tesão em fazer quadrinhos até hoje”.

Mas e esta tal de putaria?

Falar sobre sexo no país em que vivemos hoje, cada vez mais acelerando o passo rumo a um conservadorismo assustador, também é sinal de resistência, ainda que vinda de um gibi que nasceu de maneira tão despretensiosa. Afinal, temos Ernesto, Benedito, Marlene e Vera, dois casais cuja história virou de pernas pro ar. E também um casal todo trabalhado na moral e nos bons costumes que, quando se depara com um totem em pleno quarto… E pra completar, um móvel que guarda desejos, frustrações e recalques. E tudo isso, minha gente, em um único número.

“Como disse o Zé Celso Martinez, diretor teatral, prefiro RE-EXISTÊNCIA”, diz Laudo. “Essa agora já se contaminou e eu não estou nisso, quero ajudar os que semeiam a mudança. A gente não imaginava que tinha tanta gente querendo voltar pra Idade Média, queimar bruxas, ir para as Cruzadas e ter absoluta certeza de que a Terra é plana, admirar gente retrógada, fascista. Não se entendeu nada da história humana? Eu quero estar com os que querem mudar tudo”. O Marcatti ainda reforça que humor, amor, prazer, felicidade e convivência harmoniosa são a evolução humana óbvia e natural. “Quem faz resistência são aqueles que negam e querem oprimir a verdadeira elevação espiritual de nossa espécie”.

Só que a Germana vai além. Porque além de deixar claro que a putaria suposta e erroneamente considerada “convencional”, nesse momento que estamos vivendo hoje, já poderia ser considerada como resistência, ela lembra que eles fazem uma revista para adultos com uma mulher bissexual fazendo quadrinhos eróticos que mostram diversidade. “E dois homens cujos leitores são predominantemente caras cis héteros – e esses dois homens se apresentam não apenas como aliados profissionais mas também ideológicos dessa mulher. Isso passa um recado muito poderoso de resistência e união!”.

Justo. Muito justo. Justíssimo.

Sobre o futuro? Na real, nem eles sabem. Projeto a longo prazo, diversão temporária entre amigos, as duas coisas? “Que seja eterno enquanto dure”, lembra Laudo. “Fazer Ménage sempre valerá a pena enquanto for ‘simplesmente uma diversão entre amigos’”, finaliza Marcatti, deixando claro o que é realmente importante.

Pois enquanto você pode apoiar o número 2 no Catarse, dá pra comprar a edição 1 em uma das três lojinhas – da Germana, do Laudo ou do Marcatti. É só escolher.

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