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Relembrando Anos Incríveis, 33 anos depois

No dia em que a série faz seu aniversário de estreia e é relembrada pelos fãs saudosistas por seu retrato inteligente e emocionante da infância nos anos 60, a icônica série sobre a família Arnold revive uma história pouco inspiradora sobre seu encerramento

Por THIAGO CARDIM

(texto publicado originalmente no JUDÃO.com.br)

Quando o vozeirão de Joe Cocker entoava as primeiras frases de With a Little Help from My Friends, a canção que acabou se tornando mais sua do que dos próprios Beatles, a molecada sabia que era a hora de sentar na frente da telinha da TV, em algum momento do começo da década de 90, devidamente sintonizados na TV Cultura.

Estava prestes a começar a história de uma família comum, ambientada no subúrbio de uma cidadezinha qualquer dos EUA, em plenos anos 60, cujo filho mais novo, o moleque Kevin Arnold (Fred Savage), estranhamente parecia mais próximo de mim e de você do que se podia imaginar. Praticamente a infância de um Peter Parker, por exemplo. Aqueles eram os Anos Incríveis. E foram realmente memoráveis.

O piloto, dirigido por Steve Miner (que, apesar da experiência com filmes de terror no cinema, teve passagens por diversas séries teen na TV como Dawson’s Creek e Smallville) foi exibido no dia 31 de Janeiro de 1988, há exatos 30 anos, pelo canal ABC — exatamente depois da transmissão do Super Bowl XXII, que teve generosos 80 milhões de espectadores para o confronto entre Washington Redskins e Denver Broncos.

Depois de apenas seis episódios, a série já tinha sido indicada ao Emmy como “melhor comédia”. Daí vieram a presença consistente no Top 30 de audiência da Nielsen ao longo das quatro primeiras temporadas, Fred Savage sendo o ator mais jovem a ser indicado como “melhor ator de comédia” nas principais premiações (com apenas 13 anos) e até o TV Guide cravando que Anos Incríveis foi uma das 20 melhores séries dos anos 80.

E tudo começou com o que era pra ser um filme.

Um pouco de história

“A gente tava brincando com um roteiro que usava a narração como recurso”, afirmou a co-criadora Carol Black em entrevista para a revista New York, lá em 1989. Ela e o marido, Neal Marlens, achavam que o conceito tinha potencial porque daria para explorar o contraste entre o que o narrador dizia e, essencialmente, o que os personagens estavam fazendo/falando. Uma das principais inspirações foi Uma História de Natal (1983) — só que indo além. “Queríamos entrar na cabeça deles e expor o que estavam pensando quando estavam dizendo algo diferente. E isso seria acentuado por ser um narrador adulto olhando para a própria infância”.

No fim, o roteiro acabou dando ainda mais ideias e o que podia ser um filme virou um piloto, com muito da própria história da infância do casal, que cresceu nos subúrbios, tendo ao seu redor toda a coisa da vizinhança como algo fundamental em sua formação. E, embora não exista nenhuma indicação de em qual cidade a história se passa, até por insistência da própria emissora, muitos dos elementos remetem tanto a Huntington, Long Island (onde Marlens cresceu) quanto a Silver Spring, Maryland (cidade-natal de Black).

Ambientar aquilo tudo nos anos 60, uma época de mudanças radicais na história americana, com questões políticas nas entrelinhas e na mesa do jantar (tanto é que, já no piloto, o irmão de Winnie Cooper morre no Vietnã), passou a fazer ainda mais sentido. Com a história do primeiro episódio prontinha em mãos, Black e Marlens partiram pra missão de tentar vender o projeto para as emissoras. Levaram um monte de “NÃO” na cara até que finalmente a ABC topou a parada.

“No fim, Anos Incríveis mostrou que era possível fazer uma série daquelas, mais leve, bem-humorada, com diferentes ângulos de câmera e sem a risada de fundo”, afirmou Josh Saviano, que vivia o melhor amigo de Kevin, Paul Pfeiffer, em entrevista para o Salon. “Foi uma aposta arriscada”.

Basicamente, a história da série se passava sempre 20 anos antes de quando ela era exibida. Portanto, a trama começou em 1968 e se estendeu até 1973, acompanhando a vida de Kevin Arnold dos 12 aos 17 anos. Tudo com a narração do próprio Kevin na versão adulta, com cerca de 30 anos de idade. Sua família é formada pelo durão veterano de guerra Jack e pela dona de casa doce mas igualmente cheia de personalidade Norma, além dos irmãos mais velhos Wayne (essencialmente o idiota do time de futebol americano) e Karen — é ela que não apenas se torna hippie como traz assuntos como sexo, drogas e o discurso pacifista para dentro de casa.

Ah, o amor…

Um dos principais assuntos da trama, no entanto, é justamente o amor inocente que Kevin sente por uma de suas colegas de vizinhança e escola, Gwendolyn “Winnie” Cooper. Foram muitas idas e vindas enquanto os dois cresciam e amadureciam, descobrindo outras pessoas enquanto se envolviam um com o outro, mas é fato que até hoje a dupla é lembrada como um dos casais mais FOFINHOS da cultura pop.

Um casal que, já no primeiro episódio, troca um primeiro beijo ainda meio esquisito, vacilante. E que foi também o primeiro beijo PRA VALER das duas crianças. “A coisa boa de ter beijado pela primeira vez na frente das câmeras é que você tem certeza de que vai acontecer”, brincou Danica McKellar, a Winnie, em 2014, durante um dos muitos eventos do aguardado lançamento da 1a temporada da série em DVD. “Estávamos ambos assustados e nervosos, sem saber se o que estávamos fazendo tava certo”, complementou Fred Savage.

No fim, claro, depois de tanto tempo juntos no set, rolou um CRUSH mútuo ali. “Eu me apaixonei por ela pelas mesmas razões que todo garoto da minha idade se apaixonava. Era impossível conhecer uma garota mais doce e mais legal do que ela. E ela é linda, claro”, explicou-se o ator. “No começo, era mesmo uma coisa mútua. Mas logo foi de algo meio provocativo entre nós para uma relação mais confortável, de irmão e irmã”, completou Danica. E a amizade cresceu tanto que os roteiristas chegavam a trazer diálogos que as crianças tinham fora da câmera para os roteiros. “Tinha até uma expressão, Do you like him, or do you like him, like him?, que a gente usava nas nossas conversas, para falar dos caras que eu gostava, que acabou se tornando o tema de um dos episódios, semanas depois de começarmos a usar”, contou a atriz pro Collider.

Saviano completava o trio como Paul, o nerd QUINTESSENCIAL que, de alguma forma que ninguém sabe muito bem explicar, tornou-se algum tempo depois o centro de um dos rumores primordiais da internet. Aquele que, se você jogar agora no Google, vai perceber que ainda persiste. Porque, sim, AINDA tem gente que acredita que o ator que vivia Paul Pfeiffer era o cantor Marilyn Manson.

Pois é, temos que falar DESTE assunto

Apesar da semelhança física, o verdadeiro nome de Manson é Brian Hugh Warner e sua estreia como ator se deu em 1997, no bizarro e lindo Estrada Perdida, de David Lynch. “Era 1994 e eu acho que foi um dos primeiros rumores da internet, que ainda tava começando a se tornar mais mainstream. O timing foi perfeito para aquilo surgir”, diz o intérprete de Paul, em entrevista pro Yahoo. Saviano, que não seguiu em frente com a carreira de ator e foi estudar Direito, ficou sabendo da história na faculdade, ainda calouro, justamente num papo com a amiga Danica. “Eu não tinha ideia de quem era o Marilyn Manson na época. Aí fui falar com a galera da faculdade e eles conheciam. O negócio foi crescendo e crescendo, se tornando divertidíssimo pra mim e pros meus amigos”.

Assim que descobriu a história, o ex-ator até chegou a pensar em orquestrar um plano pra esclarecer tudo de uma vez. Manson marcou um show próximo de onde ficava a universidade de Josh e a oportunidade parecia perfeita: a ideia era levá-lo até o palco, onde os dois juntos poderiam dizer “hey, somos pessoas diferentes, tá?”. Mas acabou nunca acontecendo. “E eu fico feliz porque, tantos anos depois, isso ainda continua por aí”. POIS É.

Mas, apesar de tudo, o próprio Manson leva a história com muito bom humor. Savage, que continua por aí não só como ator mas também como diretor em séries como Modern Family e Two Broke Girls, teve a chance de conhecê-lo pessoalmente. “E aí ele chegou pra mim e disse ‘pois é, a gente trabalhou junto, né?’. E eu disse ‘é, eu sei disso’. Foi legal”, revela Fred pro ABC News.

A respeito de Marilyn Manson, todavia, contudo, vale lembrar ESTA história, o abuso sofrido pela atriz Evan Rachel Wood, para evitar a pegada “ai, que bonitinho”.

Sobre o final de Anos Incríveis

E então, em 1993, aconteceu que a série chegou à sua sexta temporada — que também acabou sendo a derradeira.

Com bons índices de audiência e uma excelente aceitação não só do público mas também da crítica, os motivos para o fim acabaram sendo outros. “Quando Kevin chegou à adolescência, tinha coisas sobre as quais precisaríamos falar e não poderíamos naquele horário das 8 da noite”, explicou o produtor executivo Bob Brush, em entrevista ao jornal Los Angeles Times.

Um representante da ABC confirmou a história, dizendo que a emissora achava “inapropriado falar da sexualidade de Kevin porque tudo se passava nos anos 60 e o tom era mais gentil. Além disso, tinha mesmo a coisa do horário, o programa era para que os jovens pudessem ver com seus pais e tivemos que levar a experiência do espectador em consideração para que eles tivessem a chance de assistir juntos e se sentir confortáveis com isso”.

Além disso, rolou aí também uma treta FINANCEIRA: não apenas os custos salariais do elenco estavam aumentando demais pro orçamento da série (afinal, cada temporada de uma show de sucesso representa uma negociação diferente para os protagonistas, como Friends e The Big Bang Theory bem nos ensinaram), como também os valores gastos com locações. Os cenários tinham que ser mais amplos e espaçosos — agora que Kevin tinha idade suficiente para dirigir, por exemplo, não dava pra gravar só dentro de casa, na sala de aula ou no quintal.

O executivo afirma que o valor médio pra rodar cada episódio nesta temporada derradeira era de surpreendentes US$ 1,2 milhão, só pra se ter uma ideia.

No fim, ninguém sabia muito bem que Independence Day, o series finale exibido no dia 12 de Maio de 1993, era de fato o episódio final. E quem assistiu ao capítulo, nota isso muito claramente, porque tem alguma coisa de estranho no ar, uma deixa, sabe? Brush afirma que, como não se tinha certeza de que haveria uma sétima temporada, tudo teve que ser aberto o bastante para que pudesse ser recuperado caso fosse preciso. Mas foi o texto do narrador Daniel Stern, o Kevin Arnold adulto (e um dos Bandidos Molhados de Esqueceram de Mim), que amarrou tudo como se fosse de fato a última história.

“Estávamos todos gravando o desfile no final, a câmera navegando pelos personagens, e não tínhamos ideia do que a voz do Daniel Stern diria depois. No set, tínhamos um cara maravilhoso chamado Kirk Trutner interpretando o texto do narrador, para que a gente pudesse saber o que estava acontecendo, emocionalmente”, explica a atriz Alley Mills, intérprete da mãe de Kevin, ao Yahoo. “Não sabíamos o que seria dito”. No entanto, depois que o episódio foi ao ar, passado o susto inicial, ela afirma ter assistido e concordado que aquele foi um encerramento adequado.

Brush, claro, sabe que muita gente ficou frustrada ao descobrir que Kevin e Winnie não ficaram juntos na vida adulta e não tiveram um tão aguardado final feliz. “Alguns espectadores ficaram surpresos ao perceber que nem sempre as coisas acontecem do melhor jeito que você imagina. Mas a mensagem que eu quis passar ali é que isso é parte da beleza da vida. Tudo bem dizer ‘eu queria que as coisas fossem como quando eu tinha 15 anos e eu era feliz’, mas me pareceu mais estimulante dizer que deixamos estas coisas para trás e construímos nossas novas vidas por conta própria”.

Um segredo sombrio

Para Mills, todavia, o gosto amargo que este final de Anos Incríveis deixou foi bem outro. Porque ela aposta que a não renovação se deu pelo medo da ABC com relação a uma questão apenas e tão somente judicial. “Foi tudo por causa de um processo de assédio sexual completamente ridículo contra Fred Savage — que é um dos seres humanos mais maravilhosos, doces e menos ofensivos que já andou pela face da Terra”. O processo ao qual ela se refere é de 1993 e foi movido por Monique Long, designer de figurinos de 31 anos que afirma que tanto Fred (na época com 16) quanto Jason Hervey (que vivia seu irmão Wayne, com 20 anos de idade) a assediaram tanto verbal quanto fisicamente e que por isso ela não podia executar seu trabalho no set da série, sendo demitida. Os atores e a ABC, como era de se esperar, negam as alegações.

Maaaaaaas… o assunto foi resolvido fora dos tribunais e uma espécie de “lei do silêncio” pairou sobre toda a equipe do programa. Para a atriz, isso é a prova de que a ABC mexeu seus pauzinhos e ficou com medo de seguir em frente. “Os executivos queriam evitar um escândalo mas isso só fez parecer que os garotos eram culpados. (…) Talvez eu nem pudesse estar dizendo isso, mas não me importo porque já faz muito tempo e isso tem que acabar”.

Procurada para falar sobre o assunto, Monique não só confirmou as acusações, como afirmou que, diferente do movimento que se iniciou nos dias de hoje, na época era muito mais difícil falar sobre o assunto em Hollywood. “Agora, muitos anos depois, a verdade sobre o lado sombrio de Hollywood e todo o assédio que permeia esta indústria pode ser conhecida. Digam o que quiserem, mas a verdade está aberta ao público em toda a documentação do inquérito. (…) Minha única resposta é que estes comentários da Sra. Mills são o motivo exato do porquê as mulheres do mundo do entretenimento sempre foram forçadas a ficar em silêncio sobre suas situações de assédio”.

Ou seja: assim como toda família do mundo real, os Arnold também parecem ter um amargo esqueleto escondido bem fundo no seu armário, afinal de contas.