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Batuque, metal, Iemanjá e descobrimento do Brasil: os 25 anos de Holy Land

Mais importante álbum da primeira fase do Angra e um dos mais importantes do metal nacional, disco que faz aniversário de lançamento é uma mistura de música pesada e sonoridade tipicamente brasileira

Por THIAGO CARDIM

(versão original deste texto publicada no JUDÃO.com.br)

O ano era 1995. O quinteto brasileiro Angra, depois de algumas mudanças de formação, estabeleceu o line-up formado por Andre Matos (vocal), Kiko Loureiro e Rafael Bittencourt (guitarras), Luis Mariutti (baixo) e Ricardo Confessori (bateria). Com seu disco de estreia, Angels Cry (1993), tinham conseguido atingir o objetivo de surfar na imensa onda de popularidade do power metal, formando uma banda tecnicamente perfeita, equivalente a qualquer Helloween da vida.

Mas, mesmo com seu maior hit de todos os tempos, a empolgante Carry On, faltava algo ali. Faltava um quê de personalidade, algo que os tornasse diferentes de outras bandas contemporâneas.

E, num movimento bastante ousado, foi justamente isso que o Angra buscou com seu segundo disco – Holy Land, que seria lançado em 1996. Curiosamente, o álbum completa seus 25 anos de idade no mesmo ano em que Roots, do Sepultura, também reconhecido por seu heavy metal cheio de flertes com sonoridades tipicamente brasileiras. Mas enquanto a obra capitaneada por Max Cavalera falava mais com os sons indígenas, a batucada do Angra em Holy Land é mais nitidamente inspirada em sons africanos e em ritmos como o forró e o baião.

Holy Land foi o ápice do Angra na fase liderada por Andre Matos – e, além de um dos álbuns mais importantes e representativos do metal nacional, tornou-se responsável pela assinatura étnica que se seguiria como marca registrada da banda. Além disso, também foi o disco que catapultou a carreira internacional do grupo, em especial na Europa e no Japão. A ideia foi ampliar um conceito que o Angra começou a tatear no disco de estreia, com Never Understand, que tem uma passagem de Asa Branca, de Luiz Gonzaga.

Ao longo de 4 meses, os cinco músicos se trancaram em um sítio da família do baterista, no interior de São Paulo, para se dedicarem exclusivamente à composição do novo disco. Entre as muitas novidades, eles até foram buscar algumas velharias para entender como poderiam ser utilizadas dali pra frente – Nothing To Say, a faixa que abre o disco, foi inteiramente desenvolvida a partir de um groove de bateria que Confessori tinha criado um ano antes, por exemplo.

Entre janeiro e março de 1995, a banda voltou pra São Paulo e lançou as versões demo de algumas destas canções, num álbum (?) chamado de Eyes Of Christ, item raro na discografia do Angra. Carolina IV, por exemplo, tinha o nome de River To The Sky. Algumas canções, como a faixa-título e Live And Learn, ficaram de fora da versão final de Holy Land, sendo retomadas pelo Angra muitos anos depois no EP Hunters And Prey (2002). O conceito, no entanto, já estava desenhado: um álbum conceitual sobre a época das grandes navegações e o descobrimento do Brasil, originando a miscigenação de raças que marca a nossa história. Apesar de não ter todas as músicas contando uma mesma trama, as letras tentam seguir este elo em comum de alguma forma.

As gravações rolariam apenas no final de junho de 1995, na Alemanha, mais uma vez sob a BATUTA competente de Sascha Paeth (o eterno parceiro de Tobias Sammet no Avantasia) e Charlie Bauerfeind (conhecido pelos trabalhos com o Blind Guardian). O registro das partes de cada músico e mais a mixagem rolou dentro de um cronograma relativamente rápido – cerca de 3 meses e meio (considerando que os instrumentos menos óbvios como berimbau, flauta e percussão foram gravados em São Paulo). Mas como Andre teve um problema nas cordas vocais ao longo da turnê que eles aproveitaram pra fazer na Alemanha nesta mesma época, teve que parar tudo, voltar ao Brasil para se tratar e só então retornar ao território germânico para registrar suas partes de novo.

Problemas resolvidos, Holy Land foi oficialmente lançado em março de 1996. O disco abre com uma introdução instrumental, Crossing, composta originalmente por Giovanni Pierluigi da Palestrina, compositor italiano da época da Renascença. A ideia de usar o som de um músico bastante influente na evolução da música sacra foi justamente foi determinar a Europa como o ponto de partida para a história de se lançar ao mar rumo à América.

Cheio de músicas que o Angra – e, de uma forma ou de outra, o próprio Andre Matos com sua banda solo – continuaria cantando décadas depois, Holy Land poderia tranquilamente ser resumido em uma única canção: Carolina IV. Um épico de mais de 10 minutos com diferentes passagens e mudanças de sonoridade (metal, música clássica, latina, um tanto da batida africana típica do Olodum), ele abre com uma saudação à Iemanjá (“Salve salve Iemanjá / Salve Janaína / E tudo o que se fez n’água / Jogam flores para o mar / Deus salve a Rainha”) para depois contar a história de um navio, batizado com o mesmo nome da música, que parte em busca do Novo Mundo. Aqueles mais atentos sacaram que a faixa tem até uma citação de flauta a Bebê, música do genial multi-instrumentista Hermeto Pascoal.

Da doce Silence and Distance, que fala sobre os mistérios do mar, até à pegada mais pop de Make Believe (que teve um clipe exibido à exaustão na MTV Brasil, sendo até indicado ao VMB em 1997), passando pela influência de autores clássicos como César Franck, Gustav Mahler e Richard Strauss em Deep Blue e de Mozart em Queen of The Night, Holy Land é um espetáculo de diversidade musical que tem espaço até para The Shaman – cujo título deu origem ao nome de uma outra banda (mas a gente já contou esta história aqui).

A canção sobre um pajé indígena que tenta ressuscitar um guerreiro indígena através de um ritual tem passagens faladas de um trabalho sobre música tipicamente brasileira organizado pelo pesquisador musical Marcus Pereira, da já lendária coleção Música Popular do Brasil e um dos responsáveis por dar espaço para nomes hoje reverenciados como Cartola, Paulo Vanzolini e a Banda de Pífanos de Caruaru.

O álbum ainda foi palco ainda de um dos segredos mais bem-guardados do heavy metal nacional: afinal de contas, o que diabos queria dizer o título da canção Z.I.T.O., uma das mais rápidas da carreira do Angra? Todos os integrantes, antigos e atuais, sempre brincaram com o significado e nunca deram uma resposta assertiva, por mais que fãs e imprensa especializada sempre perguntassem.

Uma referência ao conto Partida do Audaz Navegante, de Guimarães Rosa, que tem um personagem chamado Zito? O apelido de um xamã mexicano que eles conheceram enquanto estavam compondo o álbum? Uma marca de palmitos (SÉRIO)? Um palavra grega cuja tradução ninguém consegue encontrar? O nome de um alienígena que visitou a banda durante as gravações? O que não faltaram eram teorias a respeito. E todas estas já passaram pela discussão nos botecos metaleiros. Até que, em 2018, Rafael Bittencourt ENFIM contou de onde veio a inspiração – no caso, de uma série de pequenas coincidências envolvendo o nome.

Ganhando o cobiçado Disco de Ouro no Japão pelas mais de 100 mil cópias vendidas, levando-os à sua primeira turnê em território japonês (onde até hoje são bastante queridos), Holy Land teve uma turnê ao longo de 2016 na qual o Angra executou o disco na íntegra. Quer dizer, na verdade, tivemos DUAS turnês comemorativas rolando ao mesmo tempo. Porque o vocalista original Andre Matos, pouco antes de reintegrar o Shaman, TAMBÉM juntou seu time de músicos na carreira solo e tocou a íntegra do seu disco favorito à frente do Angra.

É uma pena, obviamente, que esta celebração de um dos discos mais importantes do metal nacional (e, particularmente, um dos álbuns icônicas da minha própria vida) aconteça desta vez SEM a presença do Andre entre nós. Ainda mais com tantas possibilidades, com tantas chances, com tantos “e se…”. A melhor forma de comemorar é honrar este legado, portanto, OUVINDO ao disco. Aperte o play aí embaixo e escute em alto e bom som, sem moderação.

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