Jornalismo de cultura pop com um jeitinho brasileiro.

Comix Zone e as outras cores e sabores dos quadrinhos

Com um catálogo variado de títulos fora do eixo EUA e Japão, editora de Ferréz e do youtuber Thiago Ferreira vem diversificando as ofertas no país para quem está buscando algo além dos gibis de hominho

Por THIAGO CARDIM

Xará deste que vos escreve, Thiago Ferreira era, como eu e você aí do outro lado da tela também deve ser, um apaixonado por quadrinhos. Mas, assim como aconteceu comigo e com os textos, logo ele viu uma chance de mostrar e discutir esta paixão via vídeos, de produção simples, com fartas doses de opinião, bom humor e muita cara de pau. Nascia o Comix Zone, canal do YouTube que hoje tem quase 60 mil inscritos e que, além disso, serve de pilar para um dos mais movimentados grupos de discussão sobre gibis no Facebook.

Só que, pro Thiago, chegou aquele momento que cutuca alguns apaixonados na vida. Quando eles resolvem que, mais do que só curtir aquela paixão, querem fazer parte daquele universo. Não, o Thiago não se meteu a escrever ou desenhar gibis. Mas resolveu que ia ser legal lançá-los. Tava plantada a sementinha. “A história é a seguinte – eu assistia ao Pipoca & Nanquim e vi os caras abrirem a editora deles. E o que aqueles caras fazem é vender um sonho. Três amigos que certo dia decidem abrir uma editora e trabalham com o que amam. Eu via aquilo e fica pensando: pô, eu sou capaz de fazer isso”, conta Thiago, num papo exclusivo com o Gibizilla.

O youtuber já trabalhava há quase uma década como designer, tinha feito cursos de tradução e edição, falava fluentemente inglês e francês… “Só que, por não estar no Brasil, eu não podia fisicamente tocar um negócio aí”, reforça, lembrando que atualmente vive no Canadá.

No meio de uma conversa com o Arthur Vecci, da AVEC Editora, então surgiu a ideia. “E se a AVEC lançasse um selo da Comix Zone em que eu faço tudo? Editoração, projeto gráfico, vou atrás dos direitos dos quadrinhos… O que você precisa fazer é publicar no Brasil. Cuidar de impressão, logística, distribuição…”. Essa foi a sugestão lançada no ar. Só que acabou ficando por isso mesmo, naquela coisa do “vou ver, um dia a gente marca”. Um clássico. “Fiz a mesma coisa com a Janaína (de Luna), da Editora Mino, propondo a mesma coisa. E ela também não quis. A coisa ficou meio guardada ali, achava que nunca ia dar certo”.

Até o dia em que Ferréz, ícone da literatura marginal no Brasil e que também é muito fã de quadrinhos, pintou no caminho do Thiago. “Ele me mandou uma mensagem no Instagram dizendo que assistia meu canal, o que já me surpreendeu, que viu uma coisa em mim e perguntando se eu não queria tocar um projeto com ele. Ele também não tinha nada em mente. Eu já tinha a editora e perguntei ‘e aí, vamos abrir uma editora de quadrinhos?’. O resto é história”. Nascia então a Editora Comix Zone.


Existem mais países no mapa dos quadrinhos do que EUA e Japão

Por mais óbvio que possa parecer, o principal critério de seleção para ser lançado pela Comix Zone é que o gibi seja bom. “É aquela coisa, a gente publica um quadrinho por mês, no máximo dois, então eu quero que seja um título muito bom por mês. E tem tanto quadrinho incrível no mundo inteiro, que isso não é complicado”, explica Thiago. Segundo ele, a editora tá tentando fugir um pouco do eixo EUA-Japão, já que aqui no Brasil, além da Turma da Mônica, as apostas acabam girando em torno dos gibis de super-heróis da Marvel e da DC e dos inevitáveis mangás. “Queríamos trazer bastante coisa da Europa, depois descobrimos meio que por acaso os argentinos”, revela, sobre o que acabou se tornando praticamente uma especialidade da editora.

“O Eternauta caiu no meu colo. Tava fazendo uma pesquisa de campo numa comic shop, vi este Eternauta 1969 (Nota do Editor: reinvenção do clássico de ficção científica argentino, novamente com roteiro de Héctor Germán Oesterheld e agora arte de Alberto Breccia), que eu não sabia que existia, só conhecia o Eternauta clássico”, diz Thiago. Ele reforça que, quando a Comix Zone publicou o título, viu que ali existia uma grande oportunidade, porque ele foi muito bem recebido. “Aí começamos a focar em quadrinhos argentinos”. E vieram diversos, em especial aqueles com a assinatura de Breccia, que está se tornando marca registrada da editora.

Mas o editor esclarece que uma coisa MUITO importante é que seja um quadrinho que extrapole as páginas, que não sirva apenas como mero entretenimento, uma coisa descartável. “E isso me ajuda até no canal. Porque quando eu publico Paracuellos, tenho a oportunidade de falar sobre Espanha franquista, fascismo. Publico Eternauta ou A Grande Farsa, posso falar sobre regimes autoritários. Paul Está Morto me permite falar de Beatles, de teorias da conspiração…”. E por aí vai. Uma discussão mais ampla, como toda boa arte deveria permitir.

Um pouco de bastidores

Apesar de ter, como era de se esperar, abandonado o outro trabalho no mundo do design pra se dedicar integralmente à Comix Zone, Thiago não se arrepende nem por um minuto. E isso mesmo com toda a parte burocrática, que vem muito antes do gibi chegar nas mãos do público – ele diz que não é o tipo de coisa que dê lá muita dor de cabeça. ” É mais simples do que parece e, se você tiver dinheiro, é mais simples ainda. Muitas editoras gostam de florear isso, dizer que foi difícil conseguir isso e aquilo, mas a verdade verdadeira mesmo é que é relativamente simples”, diz ele, a respeito da questão envolvendo negociação de direitos com autores estrangeiros.

Para o Thiago, o mais difícil é mesmo saber COM QUEM falar. Mas, uma vez que você consegue, não é complicado. “As pessoas acham que você tem que ter vinte anos de editora para que a editora estrangeira ou licenciante ou mesmo o próprio autor, quem quer que seja, libere os direitos. Você tem que lembrar que, como em qualquer economia capitalista, os caras querem vender, querem ganhar dinheiro. Eles não vão se negar a vender os direitos pra você porque é uma editora nova. Se você tiver como pagar, eles vão vender”, explica. “Tem muito menos barreiras e entraves do que parece”.

Agora, claro, ele insiste que uma coisa que facilita BASTANTE é você falar a língua da pessoa com quem você tá negociando. “É claro que o inglês é a língua universal dos negócios – exceto no Japão, porque lá os caras gostam que você fale em japonês. Mas, no resto do mundo, quando você vai tratar de direitos autorais, tudo bem falar inglês”, diz. Só que… “Se você vai tratar com uma editora francesa, por exemplo, eu digo que tratar em bom francês ajuda bastante. Falar em bom francês simplificou bastante as coisas pra mim. A recepção é diferente”.


E por falar em recepção, como tá sendo a do público?

De acordo com o sócio da editora, tem sido sensacional. Mas claro que o canal no YouTube ajudou MUITO no começo. “Antes de ter uma editora, o Comix Zone já era um canal de mais de 40 mil inscritos, então já tinha ali um público ávido pra consumir produtos indicados por mim”, opina. “Só que antes era uma coisa de outras editoras. Foi inclusive a reflexão que fiz quando abri a editora – pô, se eu consigo vender os quadrinhos da Panini, da Nemo, da Devir, sei lá, por que não ia conseguir vender os quadrinhos da minha própria editora? Então a recepção foi muito legal porque as pessoas já confiavam no que eu tinha a oferecer”.

Essa confiança do público foi, aliás, o que permitiu que a editora trouxesse títulos como o sensacional Paracuellos, de Carlos Giménez, por exemplo. “Você acha que um quadrinho com este nome ia vender se fosse lançado por uma editora tradicional? Não é um título sedutor. Mas como eu tenho um canal que está entre os maiores de quadrinhos no Brasil, posso me dar ao luxo de publicar um Paracuellos, digo que é bom, as pessoas confiam e compram, confirmam que é realmente bom. E a recepção vem melhorando a cada lançamento”.

Para ele, o primeiro lançamento da Comix Zone, A Canção de Roland (do canadense Michel Rabagliati), teve uma recepção um pouco morna porque, como ele não vinha do mercado editorial, de repente os leitores não confiavam automaticamente nele. “O que este maluco tá fazendo aí? Mas aí veio Eternauta, o Capa Preta do (Lourenço) Mutarelli – que foi um divisor de águas… Então as pessoas começaram a levar a sério, ver que a gente não tá pra brincadeira não”, diverte-se ele.

A cada novo título, Thiago diz receber mensagens de pessoas dizendo “este é meu primeiro Comix Zone”. E ele já responde tirando onda mas com total sinceridade, dizendo que é igual crack. “Você vai provar o primeiro e vai querer comprar tudo, porque vai perceber que estamos fazendo a coisa direito. Você pega aquilo na mão e vê que é um produto bem-feito, bem trabalhado, bem realizado. A gente imprime na melhor gráfica do Brasil e não devemos nada ao que é publicado por qualquer outra editora do país”.

Impactos da pandemia

Claro que, no começo, além do Thiago pessoa física, o Thiago e o Ferréz pessoas jurídicas também ficaram assustados, como todo mundo ficou. Que impacto isso teria nas vendas de uma editora que tinha acabado de iniciar suas atividades? “Logo percebemos que as pessoas não pararam de comprar quadrinhos, muito pelo contrário”, relembra ele. “Por isso mesmo falei pro meu sócio – a hora da gente se destacar é agora. Vamos aproveitar que o consumo não parou e colocar na rua pelo menos um quadrinho por mês”. Porque, originalmente, o plano da Comix Zone era publicar apenas seis quadrinhos em 2020.

Ajudou também o fato de que, apesar das ótimas relações e apoio da editora às pequenas lojas de quadrinhos, que 90% da produção acaba indo pra gigante Amazon – aquela, que pela estrutura monumental, não foi afetada pela pandemia. “As editoras que trabalham basicamente com livrarias demoraram mais pra fazer a sua retomada”.

E quem não tem teto de vidro, que atire a primeira pedra, já diria Pitty

Uma questão que achei importante levantar neste papo com o xará foi justamente a cobrança que um youtuber especializado em quadrinhos poderia sofrer agora que está do outro lado do balcão. Afinal, agora só vai falar bem dos seus quadrinhos e mal dos quadrinhos das editoras concorrentes? Dá pra acreditar numa opinião “isenta” (que é algo que não existe, mas tudo bem, a gente deixa esta discussão pra outro dia)?

Thiago, de verdade, não esquenta muito com isso. Bem pelo contrário, aliás.

“Enquanto comunicador da área de gibis, agora eu posso falar com mais propriedade porque eu não apenas falo, mas produzo aquilo”, diz. “A editora teve esta outra coisa que foi dar respaldo ao meu trabalho enquanto comunicador. Minha opinião ganhou mais peso, as pessoas me respeitam mais. Eu nunca tive papas na língua, continuo não tendo, continuo colocando a minha opinião, inclusive sobre outras editoras, como sempre fiz”. Resumidamente… “Não enxergo problemas”.


E o futuro?

Pra 2022, a Comix Zone já anunciou uma porrada de lançamentos. Alguns deles, claro, com datas que podem sofrer algumas alterações. Em janeiro, teve CORSO, do Danilo Beyruth, primeiro original nacional da editora. Aí, pra fevereiro, já tão rolando A HERANÇA DO CORONEL, da dupla Carlos Trillo e Lucas Varela, e ERA OUTRA VEZ, que retoma a parceria de Trillo com Alberto Breccia.

Em março, chegam as novidades: A MÃO VERDE, da francesa Nicole Claveloux, e CIDADE, dos argentinos Ricardo Barreiro e Juan Giménez. No mês seguinte, em abril, mais gibis franceses com a antologia SOCIAL FICTION, da Chantal Montellier, além de TAXISTA, de Marti Riera, clássico underground espanhol. Pra maio, teremos NOT ALL ROBOTS, do Mark Russell com arte do Mike Deodato, e a canadense PAI DE MENTIRA, de Joe Ollman. E em junho, dando continuidade à biblioteca de Alberto Breccia, vai rolar DRACULA, a adaptação dele pro clássico de vampiros.

Só filé. <3

Mas depois de Corso, será que vão rolar mais gibis nacionais? Histórias originais, inéditas? “A gente pensa sim em publicar quadrinhos nacionais, revelar bons autores. Nem que seja um selo dentro da editora, já sei até qual seria o nome deste selo de quadrinhos nacionais. Não posso confirmar nada ainda, mas está sim nos planos”.

E pra encerrar, não podia deixar de perguntar se tem algum autor ou obra dos sonhos, que ele ainda quer muito publicar. Thiago é direto, como de costume. “Ah, todo gibi que eu eventualmente sonhe em publicar a gente vai atrás e vai publicar, uma hora ou outra. Nada é impossível”.

É isso aí. Aguardamos ansiosamente os próximos passos, pra ampliar de vez o mapa de leituras de gibis por aqui.