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Tubarão 50 anos: como o clássico mudou o cinema

Aliás, a obra-prima de Steven Spielberg moldou não apenas a cultura pop, mas até o jeito que a gente vai à praia

Por THIAGO CARDIM

Quem é o maior predador natural do homem? Não, não me venha gastar o seu latim com Homo homini lupus, “o homem é lobo do homem”, a expressão que Thomas Hobbes arrotava por aí. Estou falando de um animal que, em outras circunstâncias, sem toda a tecnologia que temos ao nosso redor, sem a tal da civilização, representaria um perigo real à nossa sobrevivência.

Lembrando, claro, que os dinossauros estão extintos e que o Godzilla não existe, ok?

Você tem uma resposta na ponta da língua, né? Deixa eu acabar com a sua graça, então. Não, não é o tubarão. Na verdade, os cientistas defendem que é o urso. Em especial, o urso polar, que é a mais carnívora das espécies de ursos, aquele com mais instintos de caçador, o que é mais silencioso e fatal em seus ataques.

Ah, mas tudo bem. Eu também responderia assim, de imediato, que são os tubarões. Você sabe o motivo? Eu te conto. Ou melhor, eu te mostro:

Em junho de 1975, Steven Spielberg soltou nas telas um predador que até hoje ronda o nosso imaginário coletivo.

Tubarão (Jaws) não foi apenas um marco cinematográfico — foi o ponto de virada que transformou para sempre o conceito de blockbuster, reconfigurou o cinema de suspense e deu início à era dos “filmes-evento” que ainda domina Hollywood.

Meio século depois, o rugido das ondas nunca mais pareceu tão silencioso. E o que esse filme ainda tem a nos dizer? Spoiler: muita coisa.

A trama: um verão, uma praia e um tubarão que não quer saber de dieta

A história se passa na fictícia Amity Island, uma pacata cidade litorânea que vive do turismo. Quando um banhista é morto por um ataque misterioso, o chefe de polícia Martin Brody (Roy Scheider) tenta fechar as praias, mas esbarra nos interesses do prefeito e dos empresários locais — todos preocupados com o impacto econômico.

A tensão escala quando os ataques continuam, e Brody se junta a um biólogo marinho (Richard Dreyfuss) e a um caçador de tubarões veterano (Robert Shaw) numa jornada para eliminar a ameaça.

Simples? Sim. E justamente por isso tão eficiente. Uma parábola de monstros — reais e simbólicos.

A metáfora que nunca envelhece: capitalismo, negacionismo e… pandemia?

Por trás do suspense com dentes afiados, Tubarão é uma alegoria contundente sobre os riscos de colocar o lucro acima da vida.

O prefeito que insiste em manter a praia aberta em plena ameaça mortal virou, nos últimos anos, um símbolo de como autoridades podem negar a ciência e colocar vidas em risco — um paralelo que ganhou força durante a pandemia de covid-19.

Nas redes, muita gente comparou o comportamento do personagem com a lógica de gestores que se recusavam a adotar medidas de proteção em nome da “economia”.

No fim, o tubarão é só um sintoma. O problema é o sistema que prefere contar corpos do que perder faturamento.

Spielberg, o monstro e a tensão que não se vê

O pavor começou, na verdade, lá no distante verão de 1916, quando aconteceram uma série de ataques à banhistas na costa de Nova Jersey, creditados a um grande tubarão branco. Foram estas histórias, sobre um rastro de sangue boiando na água, que inspiraram o escritor Peter Benchley a escrever o livro batizado deJaws.

Spielberg tinha apenas 27 anos quando devorou ​​o romance de Benchley e decidiu que queria participar da sua versão cinematográfica. No entanto, seu currículo na época incluía apenas o telefilme Duel e o filme lançado nos cinemas The Sugarland Express.

A história conta que os produtores de Tubarão, Richard Zanuck e David Brown, já haviam oferecido o projeto a outro diretor, como relata esta matéria especial da revista Far Out. Mas quando esse profissional continuou chamando o tubarão de “baleia” em uma reunião de produção, Benchley (que coescreveu o roteiro para os cinemas) não ficou impressionado, e Zanuck e Brown deram o trabalho a Spielberg.

O jovem cineasta foi então obrigado a se virar com limitações técnicas pesadas — o animatrônico do tubarão vivia quebrando, e filmar no mar era um pesadelo logístico. “Não sabíamos como eles iriam terminar este filme”, ​​lembra Jeffrey Kramer, que interpretou um assistente do xerife no filme, em entrevista pra Variety. “Havia rumores por todo o set de filmagem de que o estúdio iria nos fechar”.

“Suas unhas estavam roídas até a raiz”, lembra Carl Gottlieb, corroteirista do filme. “Mas essa era a única manifestação de seu nervosismo. Steven sabia que precisava dar o exemplo. Isso significava se concentrar no trabalho e manter a calma mesmo quando tudo ao seu redor estava indo por água abaixo.”

Dessas dificuldades, nasceu uma solução genial: o verdadeiro terror do filme está no que não se vê. A câmera subjetiva que mergulha sob a água, o corte seco das vítimas, a trilha que se aproxima… Tudo isso constrói uma tensão crescente sem precisar mostrar sangue em excesso.

Esse “terror sugerido” virou marca registrada em outras obras do diretor, como Contatos Imediatos de Terceiro Grau, Parque dos Dinossauros e até Guerra dos Mundos. Spielberg entendeu cedo que o medo mais profundo é o daquilo que está prestes a acontecer — e não necessariamente do que acontece de fato.

Tubarão nunca deveria ter sido feito”, admitiu Spielberg à revista Time na segunda-feira após a estreia do filme, em 1975. “Foi um esforço impossível”.

O esforço, no fim, gerou uma arrecadação de impressionantes US$ 260,7 milhões em seu lançamento inicial. A Variety relembra, inclusive, que seu sucesso estrondoso fez os estúdios perceberem que, se embalassem e promovessem os filmes corretamente, eles não seriam apenas sucessos — poderiam se tornar fenômenos, vendendo camisetas e brinquedos junto com os ingressos.

Tubarão estabeleceu o modelo para Star Wars, Vingadores e outros sucessos que definiram a cultura que o sucederam.

O impacto cultural: medo da água, citações eternas e um hit sonoro que virou ícone

Depois de Tubarão, a simples ideia de entrar no mar nunca mais foi a mesma. O filme moldou o inconsciente coletivo ao ponto de provocar medo real de tubarões (o que rendeu também críticas de ambientalistas, com razão).

“O filme perpetuou o mito dos tubarões como comedores de homens… por mais que as chances de uma pessoa entrar no mar e ser atacada por um tubarão sejam mínimas”, opinou certa vez George Burgess, biólogo da Universidade da Flórida especializado nos bichões, em entrevista a uma revista científica.

“O medo de ser devorado é inerente às pessoas”, explica o professor de biologia marinha da Universidade Internacional da Flórida, Mike Heithaus. “Se sentimos que temos algum controle ou qualquer chance de lutar, a situação nem é tão apavorante. Com tubarões, cara, não tem árvores para você subir – e você não vai poder nadar mais rápido do que eles, com certeza”. O oceano é um terreno inexplorado, você não sabe o que se esconde abaixo de você. E Burgess finaliza: “Ainda existe gente que tem medo de colocar os pés na água por causa do filme Tubarão”. Mais de três décadas depois… Spielberg, seu danadinho.

Mas o alcance vai além do biológico: frases como “You’re gonna need a bigger boat” viraram memes antes da era dos memes. Referências ao longa aparecem em Os Simpsons, Procurando Nemo, Stranger Things e incontáveis outros produtos de mídia.

E claro, a trilha sonora. O tema criado por John Williams é possivelmente o som de duas notas mais reconhecível da história do cinema. Aquela progressão “tum-tum… tum-tum…” virou sinônimo de perigo iminente — uma obra-prima de simplicidade e tensão, usada até hoje em paródias, comerciais e vídeos de TikTok.

Tubarão como escola para o futuro do cinema

Spielberg não foi o único a sair transformado de Tubarão. Diretores como J.J. Abrams, Jordan Peele e até Christopher Nolan já citaram o filme como uma de suas maiores influências.

Peele, por exemplo, constrói o suspense em Corra! e Não! Não Olhe! com a mesma lógica do invisível ameaçador. Nolan, em Dunkirk, evoca a tensão crescente sem mostrar o inimigo. Tubarão não apenas mudou o jogo — ele criou um novo tabuleiro.

Por onde andam os protagonistas?

Roy Scheider seguiu uma carreira sólida, incluindo O Franco Atirador e a série SeaQuest. Morreu em 2008.
Richard Dreyfuss ainda está na ativa, alternando entre papéis em dramas e comédias, além de produções independentes.
Robert Shaw, que entregou uma das performances mais marcantes do filme, faleceu apenas três anos depois, em 1978.

O verdadeiro monstro, como sempre, sobrevive.

E aí?

“É um filme que, mesmo cinquenta anos depois, continua a me nutrir e inspirar, e a fazer os cabelos da minha nuca se arrepiarem quando ouço aquele tema de duas notas”, diz Chris Nashawaty, crítico de cinema, em um ensaio emocional pra revista Esquire a respeito de Tubarão.

E você? Ainda sente aquele friozinho na espinha quando pisa na areia? Porque 50 anos depois, Tubarão continua mordendo fundo — no cinema, na cultura, e nas metáforas que a gente ainda tenta digerir.