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THE LAST OF US PART II – O Ano que Não Acaba

Este pode não ser o jogo mais perfeito de todos, e dificilmente será o jogo do ano (tem muita coisa insana chegando por aí). Mas talvez seja o mais 2020 dos games.

Por SILAS CHOSEN

(Este texto contém SPOILERS de The Last of Us e The Last of Us Part II)

Normalmente, nós jogamos videogames no papel do “Herói” ou da “Heroína”.

Há um objetivo simples, que envolve “resgatar, salvar, descobrir, avançar”, quando não “derrotar alguém muito mal”. Games demoraram bastante tempo até chegar no ponto no qual se questiona uma moralidade específica (ou vaga) através de seu gameplay. Jogos de estilos
variados e conteúdo complexo colocam na ponta dos seus dedos ações menos heroicas do que as narrativas tradicionais apresentam. Isso quando não têm uma reviravolta de perspectiva e, de repente, você era o vilão da história desde o começo. É um efeito difícil de
conseguir, porque normalmente o jogo pressupõe que somos pessoas “bem intencionadas”. Ou nós presumimos isso do jogo: salvar o reino. Libertar o povo. Destruir o vilão.

Quando o jogo quer que façamos algo moralmente questionável em nome da narrativa, se o jogo fez o dever de casa (e se estamos, e isso é a coisa mais importante, IMERSOS NO JOGO), entramos em conflito intenso. Ou, como no final de The Last of Us (2012), o jogo fez seu trabalho tão bem que a decisão de “condenar a humanidade” não incomoda nenhum de nós.

Você lembra, né? Num mundo onde a civilização praticamente acabou por conta de uma pandemia de um tipo horroroso de cordyceps, um fungo-zumbi, Joel Miller perde sua filha. Anos depois, ele é escalado para levar uma garota, Ellie, até o outro lado do país, sendo que ela é
a última esperança para uma vacina. A jovem é naturalmente imune ao cordyceps, e também está sozinha no mundo. Ao longo de horas e horas de muita violência, o cara que já tinha perdido sua última gota de humanidade reencontra uma nova filha e uma nova razão para viver. Quando descobre que, para salvar a humanidade, Ellie terá que morrer, ele nem pestaneja. Ele mata todos os cientistas e médicos que iriam salvar a todos.

Quer dizer, VOCÊ mata. A sequência podia ser uma cena pré-animada, mas o pessoal da desenvolvedora Naughty Dog (a mesma de Crash Bandicoot e Uncharted) decidiu lhe dar o controle e te obrigar a assassinar cada uma daquelas pessoas que não eram só inocentes.
Eram a equipe que iria salvar o mundo. Joel toma uma decisão consciente, emotiva e egoísta. Mas quem a executa é quem está jogando.

A arte verdadeira está em como você, naquela hora, está junto de Joel. Você não pestaneja. Você aprendeu a amar essa menina e a encaixá-la no vácuo onde estava a filha de Joel assim como ele. A humanidade não importa nada quando podemos salvar alguém que é importante para nós. O lendário crítico de cinema Roger Ebert disse que filmes são “máquinas de empatia”, e é completamente certo dizer que The Last of Us é um jogo de videogame que consegue realizar exatamente isso: se tornar um mecanismo empático.

(Ebert também disse uma vez que videogames nunca poderiam ser obras de arte. Não dá pra acertar sempre, né?)

The Last of Us então termina com a mais famosa mentira dos games. Ellie pergunta a Joel o que aconteceu enquanto ela estava desacordada no hospital, e ele responde que a vacina era um engodo. A imunidade dela não significava nada. Só um tempo depois, dependendo do nível de imersividade (e talvez até de quem seja você e que experiências você, o jogador/jogadora, teve na vida em relação ao conceito de gaslighting), você para pra pensar que aquilo que o Joel fez foi uma baita sacanagem, com Ellie mais do que com qualquer outro.

E em 2020, num momento no qual todo mundo (ou quase…) está preso, potencialmente deprimido e receoso de desbravar sequer o mercado na esquina, a Naughty Dog apresenta a segunda parte do que parecia estar terminado e completo. E dessa vez, vamos girar um pouco os conceitos e tomar algumas decisões bem diferentes do que no primeiro jogo.

The Last of Us: Part II começa alguns anos depois do fim do primeiro jogo. Os personagens vivem em relativa paz na comunidade de Jackson, e conseguiram criar raízes. Ellie tem até um interesse amoroso em Dina, uma jovem impetuosa e engraçada. Porém Ellie e Joel parecem ter alguma roupa para lavar entre eles. A vida segue com patrulhas à caça de zumbis-cordyceps e o dia a dia numa cidade emparedada.

A primeira surpresa vem quando começamos a controlar alguém que não é nem Joel e nem Ellie. Uma mulher, também jovem e com uma fisicalidade mais forte, que permanece um tempo sem nome. Só sabemos que ela e um grupo de amigos estão à procura de alguém. O destino intervém e eles encontram Joel. Então a personagem nova, Abby, começa a torturar Joel de maneira chocante e impiedosa. Ellie consegue chegar a tempo de ver Abby assassinando Joel. E agora sabemos sobre o que é o jogo.

Ellie e Dina partem em busca de vingança. Pura e simplesmente. Ninguém nem tenta explicar de alguma outra forma. Ellie inicia uma jornada à procura de pistas que a levem ao grupo paramilitar que executou uma das poucas pessoas com quem teve qualquer tipo de amizade e, nos intervalos de momentos tensos de ação, temos flashbacks que ajudam a delinear não só quanto Ellie e Joel cresceram na vida um do outro nos últimos anos. Aos poucos, vão contando os pedaços de um quebra-cabeça que começa lá naquela mentira do Joel e que ajudam a explicar porque os dois estavam distantes um do outro nos últimos meses.

Ao longo da jornada, Ellie e Dina encontram e matam cada membro daquele grupo do começo do jogo, mas o objetivo central é achar Abby. Quando, afinal, é Abby quem encontra Ellie, o jogo puxa o tapete e você começa a jogar com Abby novamente (e permanece com ela até
quase a conclusão do jogo). E aí presenciamos um flashback que explica tudo. O médico que Joel matou era o pai de Abby. Ele fez pior do que condenar a humanidade – ele privou uma garota de seu pai. Ou vice-versa.


The Last of Us: Part II não reinventa a roda em termos de jogabilidade, design ou mecânicas. Já vimos tudo isso antes, embora nunca tão polido, tão funcional, tão bem aplicado. As animações faciais usam ao máximo o poder do PS4 para atravessar o uncanny valley sem problema algum. E por fazer esse “feijão com arroz” de maneira magistral, o jogo cria uma aproximação sem precedentes entre “o que o jogador está fazendo” e “o que o personagem está fazendo, a ponto de se tornar um problema quando o roteiro derrapa na tentação de ir mais longe”.

Você segue a história de Ellie tentando achar Abby, matando todos os amigos dela no meio do caminho. Então você segue a história de Abby, na qual ela tem um arco de personagem de verdade, percebendo que os traumas e o mundo cruel transformaram-na numa máquina de quebrar coisas, tanto física quanto emocionalmente. Ela, assim como Joel, perdeu a humanidade há muito tempo. E também como Joel encontra numa criança, Lev, um caminho para a redenção. Quando Abby vai responder à violência de Ellie na mesma terrível moeda, é Lev quem a lembra do que ela está para perder: praticamente tudo. Toda sua alma.

Abby segura a mão e deixa a revanche para trás. E pronto. O conflito terminou. Abby recuperou sua humanidade, Ellie descobriu que a vingança é um prato de comida envenenado. Você terminou o jogo.

Mas o jogo não terminou. Ellie volta pra casa, começa a criar um filho junto com Dina, e num dos momentos mais esquisitos da história, Tommy aparece para… Obrigar Ellie a atravessar o país em busca de ainda mais vingança?

No momento em que Abby (ou seja, você) está enfrentando Ellie, dá para ter um pequeno “lapso de controle”. Uma aplicação de dissonância ludonarrativa (ou melhor, quando o jogo está te dizendo uma coisa através da história, da temática, do clima, e dizendo outra através do que está obrigando você a fazer). Porque é bem possível que naquele momento você não “esteja com Abby”, assim como esteve com Joel na conclusão da Parte I. Porém, isso provém muito mais dos anos que passamos conhecendo e lembrando de Ellie do que necessariamente por discordarmos de Abby. Tanto que tem muita gente por aí que trocou de time: naquela hora, queriam mesmo que Ellie morresse. É uma questão de “quem está realmente no erro”, só que num mundo onde não existe certo e errado há MUITO, MUITO TEMPO.

É uma escolha muito subjetiva (Ellie estava errada, é claro).

E isso acontece novamente no final do jogo. Ellie encontra mais uma vez Abby, meses depois, quase levada à morte por conta de Ainda Mais Um Grupo de Humanos Terríveis. E é a vez de Ellie decidir recuperar a humanidade ao invés de ceder à sua vingança. Só que dessa vez, é muito difícil não enxergar o exagero da mão do roteirista. Porque Ellie já tinha terminado a jornada terrível de vingança. Já tinha aprendido a lição. Seus pesadelos, infelizmente, nunca iriam acabar. A dissonância ataca: você não quer lutar com Abby, só que dessa vez é sério.

O pedaço final do jogo deixa um gosto amargo não só porque é feio, pesado e muito violento. Mas porque não faz lá muito sentido. Talvez, se comparado com o final do primeiro jogo. Tanto Ellie quanto Abby tomam a decisão menos egoísta no final, porque não colocam “a própria vontade” acima de tudo e todos. E pode ser que de alguma forma isso criasse um sentimento de “plenitude”, tendo as protagonistas da Parte II negando a escolha do protagonista da Parte I. Mas soa um tanto “choque pelo choque”, um torture porn emocional que transitamos para dar o tom certo ao ano inesquecível (e perfeitamente esquecível) de 2020. Ellie não tinha alcançado o suficiente, e não tinha perdido o suficiente ainda. Volta pra casa, e agora não tem nem a mulher que amava e nem a habilidade de tocar violão.

The Last of Us: Part II pode não ser o jogo mais perfeito de todos, e dificilmente será o jogo do ano (tem muita coisa insana chegando por aí). Mas talvez seja o mais 2020 dos games. Uma reflexão indesejada, violenta e crua sobre o quanto podemos perder enquanto nos isolamos. Chegando ao ponto de perder mais do que dava pra perder. Parecendo até a obra de um roteirista sádico.

Um ano que parece não ter fim, mas que um dia acaba.