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Um passeio pela geografia afetiva de Curitiba

Conversamos com o José Aguiar, quadrinista que lançou um dos melhores gibis nacionais de 2020 no formato de uma carta de amor à sua cidade…e com uma narrativa pouco usual mas simplesmente sensacional.

Por THIAGO CARDIM

Eu já tinha virado fã do trabalho do José Aguiar depois de ler aquela porrada chamada A Infância do Brasil. Assim, eu meio que tava completamente vendido pra ler seu novo trabalho, CWB, assim que foi anunciado por seu selo independente, Quadrinhofilia. Tudo que eu sabia era que a sigla que dá título ao gibi é justamente a que faz referência ao Aeroporto Internacional de Curitiba – mas, quando a obra chegou nas minhas mãos, mais do que uma verdadeira declaração de amor à sua cidade-natal, que eu simplesmente não conheço, me deparei com um trabalho lindíssimo e com uma narrativa experimental que me forçou a ler de novo e de novo, para pegar cada detalhe…

Publicando gibis desde os 16 anos, prestes a completar três décadas de estrada este ano, José começou a fazer tiras de jornal quando era aluno das oficinas da Gibiteca de Curitiba. “Com amigos fiz exposições, zines e pequenos eventos. Também fui um dos criadores da primeira Gibicon (que depois se tornaria a Bienal de Quadrinhos de Curitiba) e do Cena HQ (projeto teatral que faz leituras cênicas de histórias em quadrinhos)”, explica ele, em entrevista exclusiva pro Gibizilla.

Sua personagem mais longeva é a adolescente Malu, que surgiu numa série chamada Folheteen, nome do seu primeiro livro solo, publicado em 2007 – e que virou quatro publicações impressas e mais uma webcomic que pode ser lida em www.maluca.com.br. “Tenho publicado uma obra por ano, mas sempre pulando entre gêneros diversos. Fiz parcerias no terror em Vigor Mortis Comics e históricos em Ato 5 e Revolta de Canudos. Desenhei uma adaptação de Dom Casmurro que foi adotada pelo PNLD (Programa Nacional do Livro e do Material Didático)”.

Aí ele foi finalista do Prêmio Jabuti com os livros Reisetagebuch: uma viagem ilustrada pela Alemanha (2013), Coisas de Adornar Paredes (2016) e A Infância do Brasil (2017). Então, veio CWB. Um dos melhores gibis do ano passado de acordo com a lista do Gibizilla, aliás. E selecionada para concorrer ao Prix de la Bande Dessinée Alternative (prêmio de Quadrinhos Alternativos) do Festival de Angoulême, o mais importante e tradicional evento de quadrinhos europeu.

Sobre CWB

O próprio autor diz que existem muitas formas de falar deste quadrinho. “São as histórias de duas pessoas que cruzam uma Curitiba vazia, mas viva, formando uma terceira trama maior. Ou é uma homenagem crítica à história, cultura e locais de minha cidade natal. Ou, um experimento narrativo fora do comum, já que não há início nem fim”.

E o mais legal é que não apenas as três definições estão certíssimas como se complementam e são como camadas de compreensão, que você, enquanto leitor, vai descobrindo aos poucos.

O gibi tem textos iniciais e de encerramento que ajudam a dar maior contexto, ainda mais porque não importa por onde você comece. Pelo início, você acompanha um personagem. Pelo final, segue a jornada de outro. Eles se cruzam. E a história, como Aguiar afirmou, acaba não tendo um fim propriamente dito. O autor enxerga a história como de fácil assimilação para qualquer tipo de leitor – ou, pelo menos, qualquer leitor que esteja disposto a uma leitura fora do convencional. “Que, ao decifrar a forma de leitura, embarque comigo de cabeça na exploração não só da trama, mas dos limites da linguagem dos quadrinhos”, diz. “Pode ter sim leitores que só achem os desenhos bonitos, mas esses estão perdendo a experiência que proponho. Mas não me incomodo com isso. O importante para mim era testar meus limites e provar ser possível fazer algo assim”.

Experimentando narrativas

José conta ainda que esse recurso de usar mais de um sentido de leitura era algo que queria fazer há tempos, mas não tinha ainda ONDE aplicar essa ideia. “Quando comecei a construir visualmente o roteiro de CWB, percebi que ali seria possível”.

O quadrinista sempre achou fascinante o que o quadrinista holandês-americano Gustave Verbeek fazia na sua tira The Upside Downs of Little Lady Lovekins and Old Man Muffaroo, lá em 1903. Era uma tirinha semanal de 6 painéis em que a primeira metade da história foi ilustrada e letreirada do jeito certo, então o leitor viraria a página de cabeça para baixo e as ilustrações invertidas com legendas adicionais funcionavam como a segunda metade da história.

“Mesmo na Turma da Mônica surgem vez por outra quebras com o aspecto formal da leitura dos quadrinhos”, relembra ele. “Mas o livro tem de tudo: Jack Kirby, Moebius, Shaum Taum, Peter Kupper, Luiz Gê… Muitos artistas incríveis orbitaram minha cabeça durante o processo de criação”.

E por que, exatamente, uma história sem falas? Aguiar, enquanto roteirista, não sentiu falta delas? “Confesso que sou meio verborrágico. Adoro escrever diálogos! Mas sempre me fascinei por narrativas mudas”, revela. “E nunca tive chance de explorar por tantas páginas. Fazia parte do meu auto desafio. Gosto de transitar pelos limites dos quadrinhos. Isso inclui traços, formato e, agora, narrativa totalmente visual. Até porque eu queria fazer uma HQ que pudesse ser lida em qualquer lugar do mundo. Então, nada mais natural que excluir os balões”.

José Aguiar fala sobre uma HQ que pudesse ser lida em qualquer lugar do mundo – e justamente por isso, ele se preocupou em evitar que fosse uma trama hermética demais para quem NÃO mora em Curitiba. “Por isso quis tudo que aparece nela e move as tramas fluísse naturalmente. Mesmo sendo algo sobrenatural ou surreal. Que fossem imagens arquetípicas para o leitor, que independessem do contexto histórico para que fossem entendidas e conectadas com a realidade”, afirma.

Ele diz que os seres que surgem para atrapalhar ou ajudar os protagonistas têm funções claras e você não precisa saber de antemão se eram homenagens a personagens obscuros do século XIX ou de figurinhas populares na década de 1920. “É uma HQ onde você precisa se deixar levar pelo fluxo narrativo. Se quiser, depois pode ler depois os textos complementares para entender um pouco sobre aquele universo. Mas eles não interferem na experiência da HQ. Só acrescentam outras camadas”. Eu, que sou de Santos e moro em São Paulo, concordo totalmente.

Geografia afetiva

A semente de CWB começou a ser plantada desde que José Aguiar voltou do seu primeiro período morando fora. “Passei a olhar para meu lugar no mundo com nova ótica. Valorizando mais e buscando entender melhor o que não concordava”. Tanto em Malu como em Coisas de Adornar Paredes, Curitiba é pano de fundo. “Acredito que o que é banal e cotidiano para mim pode ser exótico para quem é de fora. Amo sinceramente minhas raízes. Mas longe de ser ufanista e conivente”.

Ele diz que a história é uma grande reflexão por meio de uma jornada afetiva que até pode passar por alguns pontos mais conhecidos, mas é algo completamente diferente de um amontoado de pontos turísticos. “Foi um processo longo, que foi iniciado em Coisas de Adornar Paredes, onde passei a abordar o conceito de que toda cidade é viva”.

Para o artista, cada prédio, casa, rua, personagem obscuro, tem a ver com sua vivência. Mas ainda assim, é um olhar crítico. “Afinal, essa cidade fez possível eu ser o artista que sou hoje. Isso não é pouco. Mas acho que ela pode ser bem mais do que isso para toda a sua população se ousar ser mais fantástica do que o meu olhar sugere”.

O seu olhar, aliás, acabou sendo mais distante do que ele imaginava. Em 2019, ele foi para a Alemanha passar uma temporada e achava que seria legal um distanciamento. “Mas daí veio pandemia e lockdown no meio do processo. Foi ao mesmo tempo doído, pois todo mundo que amo estava longe e passando até por mais problemas, por causa do aditivo de insanidade política”, conta. “Mas no fim, foi esse trabalho insano que me garantiu a sanidade mental e emocional. Dei tudo de mim aproveitando cada momento”.

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