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Elas salvam o mundo — com filhos no colo e sangue nos olhos

Olha só se não são elas — as mulheres (e mães) — salvando o mundo (ou seus próprios mundos) nos filmes de hominho

Por GABRIELA FRANCO


Os dois lançamentos mais recentes dos universos de heróis, tanto da DC quanto da Marvel, colocam mulheres no centro da trama. E, convenhamos, no final das contas, são elas que resolvem tudo. Salvam o mundo. Literalmente.

Em julho, duas estreias de peso chegaram aos cinemas. No dia 10, a DC lançou Superman, dirigido por James Gunn. Exatos dez dias depois, foi a vez da Marvel estrear o aguardadíssimo Quarteto Fantástico: Primeiros Passos de Matt Shakman— sendo o grupo uma das pedras angulares da editora, carregando o DNA da Marvel clássica das décadas de 1960, 1970 e 1980.

Logo de cara, o Quarteto emplacou R$ 22 milhões na estreia e assumiu a liderança de bilheteria aqui no Brasil. Já Superman aparece em segundo lugar, com R$ 7,9 milhões na terceira semana em cartaz. Comparando só os finais de semana de estreia, no entanto, a DC sai na frente: foram R$ 25 milhões na estreia. Os números, claro, inflamaram a eterna rivalidade entre as editoras.

Mas… foda-se.

Este texto não é sobre guerra de editoras nem bilheteria. Nem sobre homens engravatados brigando para ver quem arranca mais dinheiro de nerds apaixonados.

É sobre como, em ambas as produções, no final das contas, são as MULHERES que salvam o mundo. Cada uma à sua maneira. Cada uma o seu próprio mundo.

Atenção: este texto contém spoilers. Leia por sua conta e risco.

Em Superman, temos, claro, uma Lois Lane (Rachel Brosnahan) que continua sendo fiel aos quadrinhos: firme, assertiva, corajosa. Uma repórter destemida e cerebral (em contraste direto com um Superman cada vez mais emocional) — e que ainda curte um bom punk rock das Riot Grrrls. Temos também uma Mulher-Gavião (Isabela Merced) virada no Jiraya, com atitudes não muito ortodoxas que até o próprio Superman desaprovaria.

Mas quem realmente rouba a cena é alguém para quem a audiência nem dá bola: Eve Teschmacher (Sara Sampaio).

Sim, ela mesma: exageradamente vaidosa, toda de rosa, sempre com uma bolsa de grife pendurada no braço e o celular em modo selfie permanente. Eve parece saída direto do catálogo de estereótipos femininos que a cultura pop adora mostrar: a mulher fútil. A superficial. A que está ali só para ser um troféu para o homem. Mais uma conquista dele. Uma “patricinha” que ninguém na trama — nem fora dela — espera ver fazendo algo relevante.

Aquela que nem existia originalmente nos quadrinhos, já que foi criada exclusivamente para o cinema (lembra do Gene Hackman gritando “Senhorita Teschmacher!” no Superman clássico com Christopher Reeve?). Pois é, foi criada como alívio cômico.

E é justamente por isso que a virada dela tem tanto impacto.

Quem diria que essa personagem, praticamente uma figurante, seria justamente quem forneceria, através de suas selfies e vídeos, imagens reveladoras do plano de Lex Luthor? Provas fundamentais para que a Gangue da Justiça e o próprio Superman pudessem detê-lo. Ela reforça o estereótipo — e depois o implode.

Ela entra como piada e sai como peça central. E que fique bem claro: a aparência de uma mulher nunca foi, e nunca será, medida de sua profundidade, coragem ou inteligência. O erro não está em ser como a Eve. O erro está em achar que uma mulher como Eve nunca seria capaz de fazer o que fez: salvar o mundo.

Mas agora chega de DC porque gostaria de falar realmente sobre duas outras mulheres que me chamaram a atenção no filme Quarteto Fantástico: Primeiros Passos.

Vindas de cantos diferentes do espaço sideral

Antes de qualquer coisa, que personagem INCRÍVEL a de Vanessa Kirby (Sue Storm). Logo no início do filme, a cientista brilhante e astronauta de elite descobre que está grávida. Grávida. Uma condição ainda cercada de tabus, olhares enviesados e expectativas limitantes. Mas, adivinhe? Em nenhum momento ela recua.

Não deixa de trabalhar, não pede licença do cosmos. Simplesmente segue, com seu uniforme, sua genialidade e sua barriga, se aboletando pelo espaço sideral como se fosse uma terça-feira qualquer. E, olha… isso me surpreendeu.

Confesso, que me flagrei julgando: “Mas, meu Deus, tá grávida… por que foi inventar de ir pro espaço?”.

Essa minha voz interna não veio do nada. Veio de uma mente, como a de tanta gente, sociabilizada no machismo estrutural. Uma mente ensinada a tratar mulheres grávidas como seres sagrados — e, portanto, frágeis. Uma mente treinada para achar que uma mulher gestando uma vida só pode fazê-lo se for envolta em cuidado e silêncio.

Claro que o contexto dos quadrinhos ajuda: Franklin Richards tinha que nascer no espaço. Mas é poderoso ver isso levado para a tela — uma mulher grávida que não abre mão de quem é, nem do que faz. E nós não abrimos mesmo. Eu trabalhei até os oito meses. E quantas outras mulheres não seguem assim, firmes, até a hora do parto? Isso é vida real.

Parindo no Espaço

Ultramegahigiênico e todo cheio de filtros, claro — mas um parto em um filme de ominho, gente. Isso por si só já é subversivo. A personagem de Sue sempre teve a maternidade como parte central da sua narrativa nos quadrinhos. São inúmeras histórias em que ela enfrenta desafios colossais como mãe de Franklin — e aqui, no filme, isso explode numa das cenas mais potentes do gênero nos últimos tempos.

Isso sem falar no quanto ela foi julgada por tentar proteger o filho e salvar a humanidade ao mesmo tempo. Mais uma cena saída direto da vida real: mães sendo cobradas, desacreditadas, enfrentando o mundo inteiro para afirmar: “Eu quero que meu filho viva. E quero que esse mundo também viva — para ser o lar dele. Quero salvar os dois. Não quero ter que escolher. Não vou abrir mão de nada”.

Porque é isso que tantas mulheres fazem todos os dias — equilibram o impossível, seguram o colapso com as mãos nuas e ainda são chamadas de “egoístas” por não se dobrarem. Quando, na verdade, estão tentando salvar o futuro sem abandonar o presente.

No final das contas, Sue, mãe e heroína, enfrenta Galactus. O Devorador de Mundos.

Coloca o próprio filho em risco, improvisa e abre mão do plano frio e calculista do “homem mais inteligente do mundo” (oi, Reed!) e age do jeito que uma mãe agiria quando vê sua cria em perigo: dando tudo o que tem. Improvisa. Arrebenta. E vence. Com a força de quem ama mais do que teme.

Assim como Shalla-Bal, a nova Surfista Prateada (Julia Garner) — uma mudança de gênero com relação aos quadrinhos originais que não é apenas estética, mas profundamente simbólica.

Descobrimos que ela não é apenas uma mulher. É uma tutora. Uma cuidadora. Talvez uma mãe – mas pode ser uma tia, uma irmã mais velha, tanto faz (afinal, elas também são de alguma forma figuras maternas e podem salvar o mundo igualmente). E se torna arauto do Devorador de Mundos para poupar seu povo, seu planeta. Ela se entrega por todos. Entrega seu corpo, seu destino, sua liberdade.

Mães. Mulheres. Salvando o mundo. Renunciando a si mesmas. Sendo frequentemente julgadas. Rechaçadas. Desacreditadas. Subjugadas por homens que pensam saber mais — mas que, no fim, precisam delas para não ver tudo virar poeira estelar.

Em uma das cenas mais emocionantes do filme, Sue está desacordada. E quando o filho Franklin se aproxima, em busca do colo da mãe, ela desperta e diz a Reed, o pai da criança: “Ele é muito maior do que nós”.

Fiquei dias pensando nessa frase. Porque filhos, sobrinhos etc, são isso mesmo — maiores do que a gente. Não por idealização barata e inócua, mas porque desejamos que eles vão além. Façam mais. Cheguem onde nós não conseguimos. Vão viver (assim esperamos!) além da nossa existência.

Imersa em meus estudos sobre mitologia e religião, lembrei imediatamente de um trecho belíssimo escrito por Salomão: “Como flecha na mão do guerreiro, assim são os filhos”.

Uma flecha. Você a prepara, aponta, lança — e acredita que ela vai alcançar o que você jamais poderia tocar. Foi isso que Sue fez. Foi isso que Shalla-Bal fez.

Elas não apenas salvaram o mundo — elas simplesmente criaram o futuro.